Um biopic político seria algo que não esperaríamos de Clint Eastwood, um grande cineasta, o clássico ou neo-clássico que ficou no cinema americano. Pelo menos, "J. Edgar" (2011) não é, de modo algum, uma biografia convencional ou académica de J. Edgar Hoover, o famoso fundador do FBI, que o dirigiu ao longo de várias décadas, até à sua morte, de tal modo que nem sequer parece justo tratá-lo como simples biopic.
O filme que pode, na obra de Eastwood, antecipar este seu último trabalho é "Poder Absoluto"/"Absolute Power" (1997), em que já despontava uma desconfiança em relação ao poder, nomeadamente o poder central, encarnado na figura de um presidente. Mas aí ele tinha do seu lado o escudo da ficção e uma actualidade de época que podia explicar a sua desconfiança e a sua crítica. Ora em "J. Edgar" está em causa a história real, ou presumivelmente verdadeira (a partir de argumento de Dustin Lance Black) de uma personagem autêntica, que se impôs na América como uma figura controversa.
O filme que pode, na obra de Eastwood, antecipar este seu último trabalho é "Poder Absoluto"/"Absolute Power" (1997), em que já despontava uma desconfiança em relação ao poder, nomeadamente o poder central, encarnado na figura de um presidente. Mas aí ele tinha do seu lado o escudo da ficção e uma actualidade de época que podia explicar a sua desconfiança e a sua crítica. Ora em "J. Edgar" está em causa a história real, ou presumivelmente verdadeira (a partir de argumento de Dustin Lance Black) de uma personagem autêntica, que se impôs na América como uma figura controversa.
Quanto ao filme em si mesmo, como um todo, ele constitui-se como um retrato crítico mas humano de um homem que se afirmou pela sua integridade e clarividência, antecipando os métodos de investigação policial modernos, embora, convicto da razão que lhe assistia e da sua interpretação do interesse nacional, tenha também cometido atropelos e abusos. A própria fotogafia, de Tom Stern, remete para um passado, uma memória - como em "Cartas de Iwo Jima"/"Letters from Iwo Jima" (2006) - que é expressamente convocada pelo dispositivo narrativo adoptado, com recurso ao flash back, que se percebe em vários momentos ser um tanto forçado. Mas, dentro de certos limites, "J. Edgar" é um bom retrato dos Estados Unidos durante décadas, do final dos anos 10 ao início dos 70 do Século XX, vistos a partir de um ponto de vista privilegiado e exigente.
Todavia, a meu ver é uma inspiração semelhante à de Orson Welles em "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941), com um protagonista inspirado numa conhecida personalidade da vida real, William Randolph Hearst, a partir do qual ele criou a ficção do seu filme, que faz o melhor de "J. Edgar", em que a própria composição de Leonardo DiCaprio como J. Edgar Hoover aponta para o conhecido perfil wellesiano, sobretudo quando mais velho. Mas essa inspiração gera também o seu principal limite, decorrente de não ser adoptado um ponto de vista exterior à personagem, o que constituiu o segredo de Welles no seu filme de estreia. Em vez de criar o mistério de J. Edgar, Eastwood prefere deixá-lo criar a sua própria lenda, no final desfeita, o que como tal funciona de um modo mais convencional e cinematograficamente menos conseguido. A caracterização exagerada das cabeças de Edgar e Clyde quando mais velhos, embora possa ter um significado simbólico vem contribuir para que mais se acentuem os limites, desta vez figurativos, visuais do filme.
Essencialmente por estas razões, considero "J. Edgar" um filme falhado de Clint Eastwood, acrescentando de imediato que todos os grandes cineastas têm o direito de falhar um ou outro filme que, embora falhado ou com limites, deve ser visto na parte que tem, e compreendido no que significa numa obra vista como um todo. E sem dúvida que este é um filme com abundantes traços eastwoodianos, que permitem reconhecê-lo como obra do seu autor - relizador, produtor e compositor. Devo acrescentar ainda que, perante este falhanço honesto me parece que a América, em geral, e Hollywood em especial, não gostou do filme pelo retrato que ele traça da sua personagem, como já acontecera com "O Mundo a Seus Pés", cujo protagonista não escondia a personalidade da vida real em que se inspirava. E quanto a isso estamos todos do lado de Clint Eastwood, como estávamos do lado de Orson Welles (ver "Sabedoria", 11 de Fevereiro de 2012).
Nota
Existe neste momento uma vasta e importante bibliografia sobre Clint Eastwood, em inglês e em francês, de que neste momento destaco o nº 66-67-68-69 da revista L'art du cinéma, Primavera-Verão de 2010 - e esta é uma revista muito boa, fundadada em 1993 por Alain Badiou e Denis Levy, que muito raramente chega a Portugal -, com uma perspectiva muito completa e um estudo exaustivo, e o livro "Fucking Eastwood", de Stéphane Bouquet (Paris, Capricci, 2012), com uma abordagem mais moderna, embora igualmente exaustiva e fascinante, numa edição muito interessante.
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