“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 25 de março de 2013

Silêncios e corpos

    Tenho em grande estima a cineasta francesa Claire Denis pela elevada qualidade fílmica dos seus filmes que conheço, apesar de a sua obra ser mal conhecida e mal tratada pela distribuição comercial em Portugal. A sua mais recente longa-metragem, "Uma Mulher em África"/"White Material" (2009), serve perfeitamente para compreender o seu estilo e o que está em causa nos seus filmes. 
                                   
      Passado em África, na actualidade e num país não identificado mas que se depreende ser de influência francófona, trata dos esforços de uma mulher branca, Maria Vial/Isabelle Huppert, no sentido de, antes de se retirar, de partir, conseguir assegurar ainda mais uma colheita na sua plantação de café, circulando para isso com dificuldade entre um exército regular e terroristas violentos. Tudo se define em termos fílmicos com uma grande sageza do cinema e dos seus meios, com planos perfeitos entre os quais são estabelecidas relações inesperadas e súbitas, do plano geral para o grande plano, e vice-versa; com planos gerais estarrecedores, em que a simples figura da protagonista se desenha, solitária e isolada, na paisagem; com planos vazios, planos com animais (o cavalo, o porco); com planos habitados em diferentes escalas, de personagens isoladas ou de grupos, planos de partes do corpo (planos parciais) e, sobretudo, com planos sem som, planos com ruídos apenas ou então com diálogos ou com uma música encantatória e feliz, mas não impositiva - dos Tindersticks, como nos outros filmes da cineasta.
      A montagem faz com que não haja perdas de tempo, tudo avança ao ritmo do que acontece à protagonista e dos seus contactos com negros e brancos (a sua famiília), veloz mas claro, de modo a que se perceba sempre perfeitamente o que está em causa em cada momento. Curtos, breves movimentos, em geral laterais, de câmara, rasgam o espaço apenas o suficiente para mostrar o que é preciso em contiguidade espacial mostrar, e que vai no sentido do cerco que é feito a Maria pelos conflitos com os terroristas e com a sua família, por forma a que o particular surja a partir do geral e o geral se explique a partir do particular.  
                   
    Maria tem um marido, André Vial/Christophe Lambert, que não é o pai do seu filho, Manuel/Nicolas Duvauchelle, o qual surge como enlouquecido, "incompleto" como lhe dizem em dado momento, e, mais velho e distante, paira Henri Vial/Michel Subor, mas estilisticamente "Uma Mulher em África" define-se, como os outros filmes de Claire Denis, ou mais do que eles, por silêncios estarrecedores e corpos em vários volumes e de diferentes cores que invadem o plano ou nele se perdem. Corpos vivos e mortos, o que se acentua num final siderante dado em planos breves, parciais, e em elipses sucessivas.
       E aqui devo ter uma palavra (ou a falta delas) para o trabalho de Isabelle Huppert, que como que dá corpo a si própria para, em planos diferentes, se criar a si mesma ao recriar Maria. Esta interpretação passa por vestir uma pele, a de Maria, que é criada diante dos nossos olhos de espectadores, abismados pelas mudanças que num mesmo corpo se processam de acordo com o ângulo de tomada de vistas, a escala do plano ou, num mesmo plano, na forma como veste o seu próprio cabelo, como lhe descaem os ombros, na expressão que passa pelos seus olhos - e raramente vi olhos assim, como os dela aqui, no cinema -, pelo seu rosto. Mais nova do que Catherine Deneuve, mais velha do que Juliette Binoche, e com uma lista de interpretações fabulosas atrás de si, Isabelle Huppert é muito justamente considerada hoje em dia a grande dame do cinema francês, o que aqui mais uma vez exemplarmente mostra e demonstra ser, longe, muito longe de qualquer academismo satisfeito.     
                   
     Claro está que no filme passam linhas ou entrelinhas, nomeadamente na relação de Maria, André e Manuel com as populações negras, assombradas também pela figura do Boxeur/Isaach De Bankolé, entrelinhas essas que, atravessando todo o seu corpo visual e narrativo, apontam pistas de leitura, apresentam sugestões de interpretação em interditos perturbadores. Nisso se manifesta a utilidade em termos de inteligibilidade da narrativa do que na imagem, no som e no silêncio está presente de forma discreta e implícita, apenas em surdina, e a que há que estar atento neste filme, na sua construção elíptica, pois existe e significa na sua quase invisibilidade.
     "Uma Mulher em África" nunca teve, que eu saiba, estreia comercial em Portugal, mas é um filme excepcional de uma grande cineasta (co-argumentista com Marie N'Diaye), que o dedica a Maria e às crianças-soldados. Disto eu gosto muito.

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