“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 25 de março de 2013

Poética de Sam Peckinpah

      Segundo a tradição de ascendência índia, David Samuel Peckinpah nasceu em 21 de Fevereiro de 1925 em Fresno, na Califórnia. Depois de ter estado nos marines durante a II Guerra Mundial, estudou drama no Fresno State College e teatro na University of South California, pelas quais se graduou. Tendo começado no cinema com Donald Siegel em "Riot in Cell Block 11" (1954) e "Invasion of the Body Snatchers" (1956), trabalhou durante vários anos para a televisão até ter dirigido em 1961 "Companheiros da Morte/"The Deadly Companions", a sua primeira longa-metragem para o cinema, e mesmo depois disso continuou a trabalhar para a televisão.
         Contudo, o seu verdadeiro início no cinema deu-se com "Os Pistoleiros da Noite"/"Ride the High Country" (1962), um western crepuscular que iria dar o tom para a sua obra futura. De facto, aí ele foi co-argumentista e pôde determinar o rumo de uma narrativa pós-clássica em que os dois protagonistas, os dois old timers Gil Westrum/Randolph Scott e Steve Judd/Joel McCrea, com a missão de transporarem ouro acabam por se bater lado a lado, depois de um curioso e pitoresco episódio de iniciação, com os irmãos de um marido frustrado. Anunciando os heróis dos filmes futuros, Steve fala em prezar respeitar-se a si próprio e em querer entrar em casa justificado - justamente ele, o que acaba por morrer nesse duelo final. Aquilo já não era o western clássico, obviamente, e, feito no mesmo ano de "O Homem Que Matou Liberty Valance"/"The Man Who Shot Liberty Valance", de John Ford, abrindo para um western crepuscular abria para os heróis desenraízados e para as personagens divididas dos seus filmes posteriores.  
                     Sam Peckinpah Photo
        "Major Dundee" (1965) iria dar continuação a essa curiosa e única abordagem do western, com os seus heróis algo fordianos divididos entre um norte seguro da sua razão e um sul orgulhoso e rebelde, durante a guerra com os apaches após a Guerra Civil. O lado heróico mas desesperado do final, depois de um percurso quase clássico, apontava para algo de novo e diferente, que os filmes seguintes iriam confirmar. Mas o cineasta não pôde ter a palavra final sobre a montagem do filme, e ia ser "A Quadrilha Selvagem"/"The Wild Bunch" (1969), o filme pelo qual ficou mais conhecido, a esclarecer plenamente que as personagens dos seus filmes viviam para causas nobres, pelas quais lutavam, e para missões ingratas e difíceis, que tinham que cumprir até ao fim, até à morte - como aqui acontecia ao sulista Capitão Ben Tyreen/Richard Harris, prisioneiro do nortista Major Amos Dundee/Charlton Heston e não menos heróico do que ele.
         Efectivamente, "A Quadrilha Selvagem" é o filme em que Peckinpah procede a um primeiro, curioso e original cruzamento do western com o filme negro, na medida em que os protagonistas deste filme, como os dos filmes anteriores e os dos filmes seguintes, descrevem um percurso ingrato e difícil para conseguirem impôr o triunfo sobre um tirano - um triunfo que, contudo, os exclui. Há, assim, algo de desesperado e simultaneamente de profundamente moderno na abordagem que o cineasta faz do género mais tradicional do cinema americano, de uma forma que conduz a que os traços do filme negro, típico do pós-guerra e de Don Siegel, se imiscuam nos seus filmes e os marquem decisivamente. Visto de outra maneira, os heróis desenraízados de Peckinpah enfrentam um destino trágico em que se cumprem, se descobrem e salvam. E os actores fazem parte do êxito deste filme, com velhas glórias recuperadas em pleno, como Wlliam Holden, Ernest Borgnine e Robert Ryan.
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        Depois de "Balada do Deserto"/"The Ballad of Cable Hogue" (1970), em que o pós do western entrava pelo século XX com um lirismo que vinha dos filmes anteriores, de "Cães de Palha"/Straw Dogs" (1971), situado numa Inglaterra rural, com um Dustin Hoffman notável e explorando o cerco num espaço fechado, o que o tornava assustador, e de um pitoresco "Junior Bonner, O Último Brigão"/"Junior Bonner" (1972), em que dirige pela primeira vez Steve McQueen e recupera Ida Lupino, Sam Peckinpah vai abordar a fase decisiva da sua obra com "Tiro de Escape"/"The Getaway" (1972) e, especialmente, "Duelo na Poeira"/"Pat Garrett & Billy the Kid" (1973) e o exemplar "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia"/"Bring Me the Head of Alfredo Garcia" (1974), em que o filme negro vem, finalmente, a impor-se, esclarecendo tudo, embora do lado da tragédia.                           
         "Tiro de Escape", com argumento de Walter Hill baseado em romance de Jim Thompson, explora bem o carisma do par Steve McQueen e Ali MacGraw (ele com 42 e ela com 33 anos), como Howard Hawks explorara o do par Bogart/Bacall nos anos 40 (ele com 45 e ela com 20 em "Ter ou Não Ter"/"To Have and Have Not", 1944), num filme que recupera a memória, resume a forma e renova a filosofia do filme negro, a que o cineasta iria regressar. "Duelo na Poeira" é, porém, outra coisa, o western decisivo do cineasta, em que ele assume a herança de John Ford em "A Paixão dos Fortes"/"My Darling Clementine" (1946), para que remete explicitamente na cena do barbeiro, nas cenas do saloon e mesmo na inclusão de Katy Jurado no elenco. Em vez de Wyatt Earp temos Pat Garrett, em vez de um Henry Fonda com 41 anos temos um James Coburn com 45 anos (Burt Lancaster tinha 44 anos quanto interpretou Wyatt Earp em "Duelo de Fogo"/"Gunfight at the O.K. Corrall", de John Sturges, 1957), o que os torna comparáveis, embora o resto os separe: Garrett não tem raízes nem comunidade, a não ser a oficial, contrariamente a Earp e ao próprio Kid, que contrariamente à tradição não é morto pelas costas, como acontecia em "Vício de Matar"/"The Left Handed Gun", de Arthur Penn (1958). Este é pois, um excelente último western, em que o vencedor, o "homem que matou Billy the Kid", matando de seguida a sua própria imagem, a imagem da cena e do cenário no espelho, parte apedrejado e acaba morto mais tarde por quem acabará por se tornar "o homem que matou Pat Garrett". (E se quisermos levar mais longe a comparação, Paul Newman tinha 33 anos quando fez o Kid para Arthur Penn, enquanto que Kris Kristofferson tinha aqui 37 anos.) A música e a presença de Bob Dylan fazem, de resto, parte da grandeza deste filme exemplar e memorável
                      The Wild Bunch movie William Holden, Ernest Borgnine, Robert Ryan, Warren Oates, Elsa Cardenas, Aurora Clavel              
          Mas será "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia" a obra-prima de Sam Peckinpah. De facto, como os filmes anteriores apontavam já, esse é o filme da moral dos vencidos, dos indivíduos que, sós, lutam até ao fim e acabam por perder, embora tendo do seu lado todas as melhores razões numa sociedade que as não pode tolerar. E é aqui que o cineasta se afasta dos clássicos e modernos do western para se situar numa linha de cruzamento entre o western e o filme negro, assumida do lado do filme de percurso e, desta vez, respeitando as regras do filme negro, como já acontecera em "A Quadrilha Selvagem", que, porém, continha mais elementos de western do que este filme. Warren Oates tem aqui a sua grande oportunidade como actor, de que está inteiramente à altura, e a terceira presença de Emilio Fernandez, depois de "A Quadrilha Selvagem" e "Duelo na Poeira", é tudo menos acidental.   
           Talvez que a inevitável derrota da razão, do bem e da justiça, ou então a sua vitória mas a que preço, justifiquem os paroxismos de violência que aos filmes do cineasta foram associados desde "A Quadrilha Selvagem". Esse preço, o de uma vitória para os outros ou o de uma derrota pelo menos pessoal ou parcial, impõe um lado desesperado nos filmes do cineasta, que aceita o filme negro no interior de uma estrutura que, em termos físicos e em termos fílmicos, faz lembrar o western, mas um western que se cumpre em perda, em tragédia e em violência, que contudo redime.
                    
          É um tempo de heróis divididos entre o dever e a vida, entre a razão e a impossibilidade de a imporem de modo a nela viverem. Esse é o dilaceramento de Sam Peckinpah no seu melhor, que fez com que já não pudesse ser apenas amado de pleno coração como os clássicos e os modernos do western, mas que o impôs como o cineasta dos que amaram em excesso e em excesso de verdade até ao fim, até à morte, o que acabou por fazer dele o último cineasta americano verdadeiramente romântico, o dos que na morte por outros se salvam - e é sempre fundamental perceber que, no seu melhor, os heróis dos seus filmes trabalham para uma comunidade definida, que decisivamente ajudam, como exemplarmente acontece em "A Quadrilha Selvagem", na linha de "Os Sete Magníficos"/"The Magnificent Seven", de John Sturges (1960), que por sua vez se inspirava em Akira Kurosawa ("Os Sete Samurais"/"Shichinin no samurai", 1954). "A Grande Batalha"/"Cross of Iron" (1977), situado do lado alemão da II Guerra Mundial e que termina com a terrível citação de o ovo da serpente continuar fértil, e "O Comboio dos Duros"/"Convoy" (1978), que cumpre um percurso de road movie, vão deixar plenamente estabelecido que Peckinpah foi um cineasta do excesso e de excepção - "O Fim-de-Semana de Osterman"/"The Osterman Weekend" (1983) já não podia acrescentar nada de verdadeiramente relevante, a não ser alimentar a lenda, o mito do cineasta, na linha do que "Assassinos de Elite"/"The Killer Elite" (1975) tinha feito em melhor.                      
          Será difícil tentar encontrar uma filiação clara para o cinema de Sam Peckinpah, mas se do lado de algum dos cineastas da geração anterior, a do imediato pós-guerra, ele esteve, foi do lado do incompreendido Robert Aldrich e, entre os clássicos, indiscutivelmente do lado de John Ford. E se antes de alguém ele esteve foi antes de John Carpenter, que contudo soube assumir um lado de revisitação dos géneros, dos clássicos, e de paródia, que ele, pessoalmente, raramente teve, ou só teve na ironia refinada que utilizou na revisão dos clássicos. Há, de facto, nos filmes de Peckinpah um lado de fatalismo, de filme negro, já presente pelo menos nos espisódios que dirigiu para o The Dick Powell Show, "Pericles on 31st Street" (1962) e "The Losers" (1963), que é assumido com ousadia e até ao fim, sem se ficar por hesitações ou meias-tintas, embora acolhendo um lado de estilização e de estetização da violência que mais ninguém como ele soube integrar nos seus filmes - quem aí terá tentado segui-lo terá sido Waltar Hill, ficando embora muito aquém dele. Talvez por isso tenha sido menos popular que um assumido parodiador do western como foi o italiano Sergio Leone (1929-1989), seu rigoroso contemporâneo.
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          Penso que hoje em dia ele se tornou um cineasta tão mítico como mal conhecido, e conhecido sobretudo por um filme, aliás mítico e exemplar: "A Quadrilha Selvagem". E quem vai agarrar nesse filme e nesse lado mais mítico de Peckinpah vai ser Quentin Tarantino, com o tal sentido de paródia que ele não teve mesmo na exacerbação da violência. A poética de Sam Peckinpah é, assim, uma poética do excesso, da desmedida até ao fim, até à vitória em abnegação e no vazio para os próprios. Uma poética trágica que revisita com o coração a história americana. Uma poética, pois, dos generosos combatentes por generosas causas, mesmo se, e especialmente quando perdidas, pelo menos para si próprios. E esse esbatimento dos heróis vai nos seus filmes de par, pelo menos em certa medida, com a divisão das razões entre as suas personagens, como em "Os Pistoleiros da Noite", "Major Dundee" e "Duelo na Poeira" exemplarmente acontece - e nas personagens divididas haverá que atentar em que a maioria dos seus filmes decorre na fronteira sul dos Estados Unidos, que os separa do México a que também os liga.    
            Conta-se que a própria personagem do cineasta foi excessiva em tudo, o que pode estar por trás dos excessos dos seus filmes. Ele que foi o último grande mito maldito do cinema americano, em que deixou uma marca profunda e decisiva, embora eventualmente contraditória numa cinematografia que sempre se quis de clareza e simplicidade, inclusivamente de opções e de visões da história. Nessa medida esteve muito mais do lado de John Ford do que de qualquer outro clássico, embora sem qualquer bonomia, com pura rebeldia, e mesmo nos antípodas dos grupos funcionais dos filmes de Howard Hawks. Entre os participantes nos seus filmes, destaco o director de fotografia Lucien Ballard - "Os Pistoleiros da Noite", "A Quadrilha Selvagem", "Balada do Deserto", "Junior Bonnier" e "Tiro de Escape" -, embora ele se tenha sabido sempre rodear dos melhores colaboradores técnicos e artísticos, de que soube tirar o melhor, nomeadamente dos actores.
                   
            A poética de Sam Peckinpah foi, pois, e em conclusão, a poética do rebelde, cujos heróis tinham unicamente de prestar contas perante a morte, perante o além, o que quer dizer, perante si próprios. Eles foram os heróis românticos de combates alheios de que participaram desinteressadamente, ou com o interesse que tivessem no prazer de combater do lado da razão, do bem e da justiça, sem prémios ou recompensas para além de se saberem certos, pela justeza do combate encontrados e redimidos. Nessa conta os excessos lhes devem ser levados - e lhe devem ser, a ele, levados. Ele que foi quem na sua geração melhor soube aliar o ético e o trágico numa busca metafísica que se cumpria no combate justo, até ao fim, e o último grande cultor do western.
         Morreu em 28 de Dezembro de 1984 em Inglewood, na Califórnia, com 59 anos. Aqui o recordo e honro a sua memória.    

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