“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 30 de março de 2013

Encruzilhada

         "A Última Vez Que Vi Macau", de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (2012), é um filme muito curioso que escapa bem à manta de retalhos que poderia ser a junção de ficção e documentário num mesmo filme, evitando também a indefinição que resultaria de, ao tentar juntá-los, não ser nem uma coisa nem outra.
      A ideia de base de um documentário sobre Macau e a memória desse antigo território português a partir de memórias pessoais era, por si mesma, muito boa, até porque Macau permanece o mais estranho e desconhecido dos antigos territórios coloniais portugueses, onde se verificou um muito original cruzamento de culturas que o cinema português muito raramente tem tratado - Paulo Rocha em nível superior e pouco mais. Sobre a actualidade de Macau e o seu mistério, o documentário está bem cumprido em "Alvorada Vermelha" (2011), curta-metragem dos mesmos realizadores, que ressuscita a sua primeira colaboração no excelente (e premontório) "China, China" (2007).
                                  
         O que na parte ficcional de "A Última Vez Que Vi Macau" há de mais interessante e estimulante é que ela permite introduzir uma subjectividade, a de Guerra da Mata, que se vai estender à parte documental, o que, sendo perfeitamente dominado, serve de pretexto para a evocação do passado do próprio co-realizador naquele território, nos anos 70 do século XX, dessa mesma época  - o uso de fotografias da época, inteiramente justificado, resulta muito bem - e, a partir daí, para a evocação pelo filme do próprio passado do território. Mas não se fica por aqui o interesse da ficção neste filme, pois a presença de Guerra da Mata é mais invisível que visível, uma vez que ele não aparece a não ser fragmentariamente, em planos parciais, como presença ameaçada mais sugerida do que mostrada numa narrativa em si mesma fantomática, que se estabelece sobre o rasto de uma ausente a partir da voz off dele, que surge recorrentemente em espaços vazios sobre o silêncio, o vazio - o elemento material e visível dessa intriga está muito bem dado pela gaiola tapada.
                    
            De ambos os lados, ficção e documetário, resulta o cruzamento de culturas, que no seu melhor vai remeter para uma fantomática presença passada portuguesa, como tal dada e transmitida: como fantasma, mas um fantasma que, antiga presença que foi, se transforma em presente, a partir do qual é colhido. Do lado documental, este é um filme que remete para documentários portugueses sobre outros objectos: "A Dama de Chandor", de Catarina Mourão (1999), sobre Goa, "Ruínas", de Manuel Mozos (2009), sobre Portugal. De facto, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata filmam o passado mais distante, ou a sua memória, a partir do presente, dos seus vestígios persistentes, como nesses dois filmes era feito de um modo deliberadamente documental. Só que a isso acrescentam uma ficção que, assumindo referências na história do cinema ("Macau"/"Macao", de Josef von Sternberg, 1952), serve de pretexto para uma abordagem do cruzamento de culturas na actualidade, no desenvolvimento de um trabalho ficcional que vinha de "China, China", aqui mais elaborado do lado da construção formal e do uso da elipse.
                     
            Aparentemente um objecto espúrio sobre um território espúrio mas mítico, na base de uma experiência colonial espúria mas única, "A Última Vez Que Vi Macau" é um filme muito bem construído a dois sobre a fronteira entre o documentário e a ficção, que talvez atinja o seu melhor nos 20 minutos finais, em que a intriga ficcional se resolve com momentos que remetem  para a primeira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, "O Fantasma" (2000), como o homem que, solitário, corre desabaladamente pela rua, antes de um pôr-do-sol muito sugestivo que rima com a alvorada vermelha do título, e do nome do mercado, da curta-metragem homónima, aliás cinefilamente dedicada à memória de Jane Russell. Entre um e outro filme, um sapato de salto alto, em ambos atropelado, funciona como ponto comum que constrói o seu próprio mistério (e o dos filmes) e como mistério permanece, inexplicado, criando e preservando o seu enigmático fascínio.
              O que, a meu ver, faz a originalidade do actual cinema português é a enorme diversidade de propostas narrativas e estéticas que o atravessam, com respeito da plena expressão de personalidades criativas próprias e muito interessantes, como o caso de João Pedro Rodrigues, a solo ou acompanhado por João Rui Guerra da Mata, exuberantemente demonstra no seu melhor.

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