João
Bénard da Costa (1935-2009) e Eduardo Prado Coelho (1944-2007) foram
dois grandes "maîtres à penser" da segunda metade do século XX e do
início do XXI em Portugal. Em geral, é muito mau sinal que sejam publicadas as obras completas de alguém, porque, salvo excepções que não as deles, é sinal de que se passou para o outro lado,
mas pelo significado e a importância de ambos na cultura e no cinema em
Portugal devo aqui chamar a devida atenção para a publicação de tais obras completas no caso deles.
Fui aluno, de Filosofia e de Cinema, de Bénard da Costa, nos (literalmente) idos de sessenta, e pude assim, com alguns outros, usufruir do pensamento e da personalidade dele enquanto jovem,
do que guardo viva memória. Foi num curso de cinema, dado por ele como
actividade extra-curricular no Liceu Camões, em Lisboa, que, depois de
ter frequentado os Cahiers du Cinéma de capa amarela da década anterior, comecei a abrir mais e melhor os olhos para o cinema e para os filmes da "nouvelle vague" francesa, que então começavam a chegar a Portugal. Mas
isto são memórias pessoais que partilho com alguns outros, como eu
também alunos de Mário Dionísio (1916-1993), um outro grande "maître à
penser".
Mas com muitos mais partilho a organização pelo João Bénard de grandes ciclos de cinema na Fundação Calouste Gulbenkian - onde ele esteve na origem da Secção de Cinema do Serviço de Belas-Artes, que dirigiu - durante
os anos 70, a começar pelo dedicado a Roberto Rossellini em 1973, com a
presença do próprio cineasta. Por essa altura publicava-se a segunda
série da revista "Cinéfilo", com Fernando Lopes como Director e
António-Pedtro Vasconcelos como Chefe de Redacção, onde de tudo é dado testemunho coetâneo. Depois foi a programação da Cinemateca Portuguesa, primeiro como subdirector de Luís de Pina (1931-1991), mais tarde, e a partir da morte deste, como Director. Aí, com muitos outros, fiquei a conhecer a sério a História do Cinema - de que ele foi professor
na Escola Superior de Cinema do Conservatório Nacional entre 1973 e
1980, com evidente benefício para os seus alunos de então -, pelo
contacto directo com os filmes dos grandes cineastas e das grandes
cinematografias, acompanhados por comentários dele e por catálogos de que ele era o coordenador e o principal autor. É
extensa e muito relevante a lista de nomes de cineastas e assuntos que
ele programou e divulgou na Gulbenkian e na Cinemateca. Entretanto, com o nome de Duarte de Almeida começara a participar como actor em filmes de diversos cineastas, nomeadamente de Manoel de Oliveira desde 1972, passando assim mais para dentro do cinema.
Mas
a relação do João Bénard com o cinema tinha começado na década de 50,
no Centro Cultural de Cinema, de que foi Director entre 1957 e 1960, e
prosseguira nas páginas de "O Tempo e o Modo", importante e influente revista cultural dos anos 60, de que foi co-fundador com António Alçada Baptista (1927-2008) e subdirector, primeiro, Director depois. Sem prejuízo das suas outras actividades, voltou
a escrever regularmente na imprensa, a partir da segunda metade dos
anos 80 no semanário "O Independente", mais tarde no jornal "Público".
São todos esses fabulosos, eruditos e apaixonados artigos finais, que não se limitavam ao cinema, de um homem de imensa cultura, visual, cinematográfica, literária, filosófica e artística, que a Assírio &
Alvim, que o começou a editar em vida, tem estado a publicar com o
título "Crónicas: Imagens Proféticas e Outras", para o que aqui quero
chamar a atenção de todos, em especial das gerações seguintes. Todos
temos, ainda hoje, muito a aprender com ele, nomeadamente em amor e saber do cinema, de um homem que foi também um grande programador, escritor e pensador.
Eduardo Prado Coelho era mais novo, provavelmente meu contemporâneo no Liceu Camões, onde concluí o curso do liceu, embora eu só me lembre dele dos tempos da Universidade de Lisboa, na segunda metade dos anos sessenta - os tais dos idos, que foram muito importantes também em Portugal. Sem estar circunscrito ao cinema, o Eduardo praticou
a crítica de cinema nomeadamente no "Diário de Lisboa", nos anos
sessenta, e no semanário "Expresso", e o primeiro grande livro dele que
li foi "Os Universos da Crítica" (Lisboa, Edições 70, 1982), a sua tese de doutoramento - livro que que ainda hoje tenho, marcado com um postal anunciando a programação do ciclo que a Cinemateca Portuguesa dedicou a Eric Rohmer em Junho/Julho de 1983.
Além de ter sido director-geral da Acção Cultural em 1975-76 e conselheiro cultural junto da Embaixada de Portugal em Paris entre 1987 e 1998, funções que desempenhou, como outras, com todo o brilhantismo que conferia a tudo o que fazia, foi crítico e cronista de referência na imprensa portuguesa, nomeadamente em o "Jornal", no "Jornal de Letras" e no
"Público", continuando sempre a escrever sobre cinema, e
especificamente sobre o cinema português, do que aqui recordo "Vinte
anos de cinema português - 1962-1982", publicado na Biblioteca Breve do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa em 1983, ainda hoje uma obra de referência
pela sua lucidez e ousadia - um primeiro volume, "Breve história do
cinema português - 1896-1962", da autoria de Alves Costa (1910-1988),
tinha sido publicado na mesma colecção em 1978.
Nessa
obra e em escritos avulsos, ele foi em Portugal, justamente com Bénard
da Costa, um grande defensor de Manoel de Oliveira e de António Reis e
Margarida Cordeiro, quando a generalidade da crítica portuguesa os
denegria, contra o que já então escrevia alguma da mais relevante
crítica de cinema internacional, nomeadamente francesa. O Eduardo viu,
concretamente nos filmes de Oliveira, o que mais ninguém até hoje viu.
Distinto professor universitário, aí os seus alunos colheram um
benefício excepcional do convívio com ele e do ensino dele - e eu sei
que ele foi um professor universitário absolutamente excepcional.
A obra de Eduardo Prado Coelho que, agora infelizmente
completa, a Imprensa Nacional - Casa da Moeda está a publicar é por tudo
isso de importância capital para todos, e em especial para os mais
novos, pois ele foi um pensador da filosofia, da cultura, da
comunicação, da arte e do cinema absolutamente fora de série e um grande
escritor, de uma grande curiosidade e abertura para o mundo e de uma
enorme erudição, cujo pensamento deve ser conhecido e transmitido.
Eu sei que a vida continua, logo a partir da segunda-feira
seguinte à nossa morte, como lembrava José Manuel Rodrigues da Silva
(1939-2009), outro grande crítico de cinema precocemente desaparecido - e
deste lembro-me, como do João Bénard e do Eduardo, da última vez que o
vi, numa livraria de Lisboa. O grande desafio que eles lançam para o
futuro é o de um pensamento crítico culto, inteligente e bem informado,
capaz de pensar e de compreender em termos de história da cultura, da
arte e do cinema, bem como em função da história geral, da actualidade e
da própria experiência.
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