“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 20 de abril de 2013

Para doer

     Sem ter tido tempo para ver em 3D "A Gruta dos Sonhos Perdidos"/"Cave of Forgotten Dreams", de Werner Herzog (2010),  pude assistir ao seu filme "Dead Row" (2012) durante o Indie Lisboa 2013, que está a decorrer neste momento. É um filme que vem precedido da fama de olhar sem contemplações para a pena de morte nos Estados Unidos, e, de facto, sem qualquer transigência o cineasta consegue apresentar-nos casos separados de prisioneiros que aguardam a marcação da execução da pena capital. Sem transigência sobre o assunto e sem transigência com o seu próprio ponto de vista a esse respeito, anunciado desde o início de cada uma das quatro partes em que o filme, também apresentado como mini-série, se divide.   
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      Vindo do tempo do "cinema novo" alemão dos anos 60, Werner Herzog, que adquiriu notoriedade com "Aguirre, o Aventureiro"/"Aguirre, der Zorn Gottes" (1972), "O Enigma de Kaspar Hauser"/"Jeder für sich und Gott gegen allen" (1974), "Coração de Gelo"/"Herz aus Glas" (1976), "A Canção de Bruno S."/"Stroszek" (1977), "Nosferatu, o Fantasma da Noite"/"Nosferatu: Phantom der Nacht", que revisita o mítico filme mudo de Friedrich W. Murnau (1922), "Woyzeck, o Soldado Atraiçoado"/"Woyzeck" (ambos de 1979) e "Fitzcarraldo" (1982), tem a fama de não recuar perante as questões difíceis, o que aqui mais uma vez acontece. Todos sabemos que não há sistemas perfeitos, nomeadamente sistemas judiciais perfeitos, enquanto quem os cria, com eles vive e os encarna forem seres humanos. É mesmo assim, e ainda bem. Agora que um sistema se preste a dar a um estranho, mesmo se muito bem credenciado, todos os esclarecimentos que lhe são pedidos sobre casos concretos, como aqui acontece com o sistema penal norte-americano, é prova cabal de abertura e de transparência, já demonstradas noutras ocasiões, por exemplo com os documentários de Frederick Wiseman, que terão mesmo sido pioneiros na abertura e exploração de espaços muito importantes para o cinema.                    
       E efectivamente Werner Herzog não é um cineasta qualquer. É alguém capaz de conduzir conversas sem atropelar os interlocutores com as suas convicções pessoais, interlocutores neste caso todos eles condenados à pena de morte, que aguardam se cumpra numa prisão de máxima segurança, e capaz de nos facultar o acesso a casos muito diversificados, da culpa assumida à culpa rejeitada, passando por casos indecisos, ouvindo sempre outros envolvidos, nomeadamente na investigação policial ou na discussão judicial de cada caso, e dando mesmo lugar à apresentação de argumentos favoráveis à pena de morte. "Dead Row" não é, pois, um libelo declarado contra a pena de morte, antes prefere assumir um ponto de vista participante para inquirir das razões que a ela levaram e dos sentimentos dos condenados para, a partir daí, construir o seu próprio discurso fílmico.
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         Por isso, começa por pôr o espectador a pensar na pena de morte como questão e continua mostrando-lhe vários casos, incluindo de possível erro judiciário, o que é, efectivamente, um dos argumentos mais fortes contra a pena de morte. Mas para isso ele nunca parte de preconceitos, antes prefere ouvir os diversos intervenientes em cada caso e deixar ao espectador o encargo de formular o seu próprio juízo. Poderá sempre dizer-se que escolheu os casos a tratar neste filme, e sem dúvida que os escolheu, o que se tornava necessário para a definição de um ponto de vista, o seu, como lhe competia. Contudo, nas conversas mantém-se circunspecto, sem tentar conduzir aqueles com quem fala para terrenos escorregadios, para os quais, aliás, eles, amadurecidos por longos anos de prisão e pela perspectiva que têm pela frente, não se deixariam facilmente levar. Mas também não evita as questões mais difíceis, como lhe compete e a sua posição pessoal exige.               
     O sistema consente ser posto em causa, não tem qualquer dúvida em mostrar os seus corredores e labirintos numa prisão de máxima segurança, nem impede os condenados à morte de falarem livremente. Esta é a América que eu admiro e respeito, mostrada desassombradamente num filme que põe em causa as suas instituições e desvenda os seus mais questionáveis aspectos sem qualquer problema, do que sai obviamente prestigiada, apesar disso e por causa disso. Uma América que se debate hoje em dia com problemas internos e externos gravíssimos, de que a pena de morte é apenas um, designadamente problemas relacionados com a violência, de que a pena de morte é apenas uma face. Problemas que, estou certo, saberá resolver, aprendendo com as próprias fragilidades do sistema, nomeadamente com a crueldade e perversidade da violência institucionalizada do Estado no caso da pena de morte.
                          
        Na sua excelente construção documental, na sua inteligência e no seu desassombro, "Dead Row" pode ser usado como argumento contra os estados que, nos Estados Unidos, ainda têm no seu sistema jurídico a pena capital. Mas ainda não pude ver "Into the Abyss", também de Werner Herzog (2011), sobre o mesmo assunto, e que virá demonstrar e corroborar o interesse que este justificadamente lhe tem merecido nos últimos anos. O cineasta, que se voltou recentemente para o documentário de forma mais sistemática sem abandonar a ficção, é sem dúvida um dos nomes maiores do cinema contemporâneo, que aqui como tal saúdo e aplaudo pelo mérito especial de "Dead Row" - eu que também sou contra a pena de morte.
     Espero ainda poder ver a sua experiência com o 3D, que poderá, por sua vez, ser um argumento de peso a favor deste. Mas disso só poderei mesmo falar depois de ver, embora o simples facto de Herzog ter feito um filme com ele dê conta de uma vivacidade e abertura de espírito notáveis.

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