Entra-se no mundo encantado de Jacques Demy por um corredor com a parede da direita revestida de espelhos que reflectem as imagens mais conhecidas dos seus filmes mais famosos, que recobrem a parede da esquerda e assim se projectam, intactas, na nossa memória, como em espelhos wellesianos ou deleuzianos, até ao infinito. A exposição "Le monde enchanté de Jacques Demy" está situada no 5º piso do edifício da Cinemateca Francesa (51 rue de Bercy, 75012 Paris) e por ordem cronológica percorre, e faz-nos percorrer, a vida e a obra deste extraordinário cineasta da "nouvelle vague" francesa, um insatisfeito precocemente desaparecido (1931-1990).
Não lhe foi especialmente difícil o início no cinema, para o qual fazia pequenos filmes desde muito novo com o equipamento que tinha, equipamento e filmes também aí expostos. A sua admiração por Jean Cocteau, com quem trocou correspondência e de quem adaptou "Le bel indifférent" (1957), terá ajudado, mas o seu talento próprio fez nessa e nas outras curtas-matragens que dirigiu ainda nos anos 50 o que faltava para chegar a "Lola" (1960), uma primeira longa-metragem fundadora com uma belíssima e mítica Anouk Aimée.
A musicalidade que percorria esse filme iria, depois de "A Grande Pecadora"/"La Baie des Anges" (1962), com uma fabulosa e igualmente mítica Jeanne Moreau, explodir em música, diálogos cantados e progressivamente alguma dança em "Os Chapéus de Chuva de Cherbourg"/"Les parapluies de Cherbourg" (1963) e "As Donzelas de Rochefort"/"Les demoiselles de Rochefort" (1966), com Catherine Deneuve acompanhada no segundo pela sua irmã, Françoise Dorleac (1942-1967), George Chakiris, Jacques Perrin, Gene Kelly...
Não, não vou prosseguir, estou apenas a introduzir um grande cineasta francês e a grande exposição que lhe dedica, e a cada um dos seus filmes, a Cinemateca Francesa. É uma exposição muito boa e muito merecida, com originais ou reproduções de peças usadas nos seus filmes, nalguns casos com os desenhos do próprio Jacques preparatórios dos cenários, do vestuário, com os próprios argumentos dos seus filmes. E, no espaço condigno reservado a cada um destes, grandes fotografias de rodagem, ou excertos dos próprios filmes, ou documentários sobre eles - muitas, a maioria dessas fotografias tiradas por sua mulher, Agnès Varda.
O mundo encantado de Jacques Demy merece tudo isto, pois ele foi um dos cineastas mais importantes da "nouvelle vague" francesa e um extraordinário criador de filmes, em especial de um novo tipo de musical, mas também de filmes fantásticos como "A Princesa com Pele de Burro"/"Peau d'âne" (1970) e "The Pied Piper" (1971) - o primeiro, baseado em Charles Perrault, com Catherine Deneuve e Jean Marais, o segundo com Donovan como compositor, actor e cantor. Para darem testemunho da importância dos seus filmes e os estudarem de novo, foram editados novos livros que demonstram, de forma clara e enriquecedora, que Jacques Demy foi um dos maiores cineastas franceses da segunda metade do Século XX e um dos maiores cineastas de toda a história do cinema. No final da sua vida, quando se considerava insatisfeito com as possibilidades do cinema, Demy, que tinha praticado o desenho nos anos 40 e a fotografia ao mesmo tempo que o cinema dedicou-se à pintura, criando telas que, como os seus desenhos iniciais e as suas fotografias, também figuram nesta exposição. Sobre a própria exposição que lhe dedica, e a propósito dela, a Cinemateca Francesa editou um excelente catálogo, com prefácio de Costa-Gavras, président, e apresentação de Serge Toubiana, directeur général, com reproduções fotográficas de todas as peças expostas, novos textos, novas entrevistas e novos depoimentos sobre o cineasta e os seus filmes, que são objecto de uma retrospectiva nesta ocasião, assim propostos de forma mais completa, que convida ao prosseguimento do seu estudo.
Quero, porém, aqui recordar o tempo em que, nos anos 60, se acompanhava vivamente os filmes, cada novo filme do jovem Jacques Demy, a enorme emoção e a muito favorável impressão que eles causavam. Foi por causa dele, e dos outros cineastas da "nouvelle vague" e dos cinemas novos, que os anos 60 foram, mesmo em Portugal, exaltantes, exuberantes e muito estimulantes, inclusive intelectualmente, no cinema. Não tenho memória de outra época como essa, em que em Portugal começava também um "novo cinema", com Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo e os outros que iriam iniciar-se logo a seguir a eles. Nessa altura pudemos todos assistir ao nascimento de alguma coisa de verdadeiramente novo e muito interessante no cinema, como se disso nós próprios partcipássemos - e participávamos. E também se conversava, lia-se, discutia-se e escrevia-se sobre isso, esses e outros filmes, especialmente americanos, de que assim nos apropriávamos e fazíamos nossos.
Quero, porém, aqui recordar o tempo em que, nos anos 60, se acompanhava vivamente os filmes, cada novo filme do jovem Jacques Demy, a enorme emoção e a muito favorável impressão que eles causavam. Foi por causa dele, e dos outros cineastas da "nouvelle vague" e dos cinemas novos, que os anos 60 foram, mesmo em Portugal, exaltantes, exuberantes e muito estimulantes, inclusive intelectualmente, no cinema. Não tenho memória de outra época como essa, em que em Portugal começava também um "novo cinema", com Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo e os outros que iriam iniciar-se logo a seguir a eles. Nessa altura pudemos todos assistir ao nascimento de alguma coisa de verdadeiramente novo e muito interessante no cinema, como se disso nós próprios partcipássemos - e participávamos. E também se conversava, lia-se, discutia-se e escrevia-se sobre isso, esses e outros filmes, especialmente americanos, de que assim nos apropriávamos e fazíamos nossos.
Depois, mas só depois, veio o Maio de 68, que para muitos hoje em dia é sinónimo da década que apenas veio culminar, levando alguns no cinema francês a enveredar por um caminho mais político. Mas o que foi absolutamente fundamental, mágico, foi assistir ao nascimento da "nouvelle vague" francesa e de cinemas novos como o italiano, o alemão, o brasileiro, o japonês, o "free cinema" inglês, o New American Cinema sediado em New York - um nascimento que se verificou na maioria dos casos ainda durante a década de 50.
Vão, pois, a Paris ver esta exposição, que estará até 4 de Agosto na Cinemateca Francesa, e se forem antes de 7 de Julho poderão ainda visitar, no 7º piso, a exposição "Maurice Pialat - peintre & cinéaste", que a este outro grande cineasta francês (1925-2003), que chegou mais tarde e com mais dificuldade ao cinema do que Jacques Demy, aí é neste momento dedicada. É também uma bela exposição e acompanhada por um belo catálogo, da responsabilidade de Serge Toubiana.
Que os aproximou aos dois, Demy e Pialat? A pintura e a cor. De facto, ainda durante os anos 40, depois de ter frequentado as Belas Artes, Maurice Pialat começou por pintar durante algum tempo, antes de, a partir de 1951, ter começado no cinema na curta-metragem - a sua estreia na longa-metragem dá-se só em 1968, com "L'enfance nue", depois de muitos projectos rejeitados - um processo que também atingiu Jacques Demy, com projectos não realizados ele também. As pinturas de um e do outro figuram nas respectivas exposições e são reproduzidas nos respectivos catálogos. Talvez que o interesse de ambos pela pintura justifique a especial atenção que cada um deles dedicou à cor nos respectivos filmes - mais fantasista em Jacques Demy, de acordo com os filme que fez a cores (e foi a maioria), em que dominavam ou o musical ou a fantasia (quando não ambos), mais naturalista em Maurice Pialat, de acordo com o seu universo pessoal, presente em cada um dos seus filmes. Poderá mesmo compreender-se a partir daqui que "Van Gogh" (1991) foi o menos acidental dos filmes de Pialat, um grande cineasta cujo filme mais conhecido é "Aos Nossos Amores"/"À nos amours" (1985), em que se estreou Sandrine Bonnaire, e que teve mérito suficiente para ser mal acolhido, mal amado pelos próprios franceses.
Vejam estas duas exposições mas vejam sobretudo os filmes destes dois grandes cineastas franceses, e outros de outros cineastas da "nouvelle vague" francesa, para perceberem que aí se situou a grande mudança moderna no cinema, numa época, note-se, em que declinavam em beleza os grandes clássicos americanos e em que o fundamental do cinema moderno americano do pós-guerra se tinha já cumprido em vários dos melhores casos, enquanto emergiam ainda os cineastas que tinham feito a sua aprendizagem na televisão durante os anos 50. E não preciso de dizer quem, no cinema italiano, atingiu o seu melhor na mesma década de 60, enquanto Roberto Rossellini se afastava para a televisão - no cinema italiano, no cinema sueco, no cinema francês... Essa foi a segunda grande revolução modernista no cinema, e a última grande transformação artística que ele sofreu, com muitas e importantes consequências, antes de a tecnologia ter chegado para impor a sua lei.
Também vivo nessa altura, e muito influente, era Jean Renoir, com Rossellini figura tutelar da "nouvelle vague" e um dos maiores cineastas de sempre, sobre o qual saiu agora a biografia definitiva, "Jean Renoir", de Pascal Mérigeau (Paris, Flammarion, 2012), autor que já nos tinha dado "Pialat" (Paris, Grasset, 2002).
Só para terem uma ideia mais pecisa sobre os anos 60, é a partir de 1957, com "O Falso Culpado"/"The Wrong Man", que Alfred Hitchcock atinge o topo da sua obra (e "Intriga Internacional"/"North by Northwest", 1959, foi o seu primeiro filme que vi). Mas já nessa altura, e especialmente a partir de então, ele era o homem que sabia demais no cinema, o que "A Mulher Que Viveu Duas Vezes"/"Vertigo" veio confirmar em 1958 (e esse foi um filme que conheci tardiamente), já depois do livro que no ano anterior lhe tinham dedicado Claude Chabrol e Eric Rohmer, fundador de uma fama intelectual que o livro-entrevista com François Truffaut viria confirmar e relançar em 1966 (e esse foi um dos meus primeiros livros de cinema).
Falo disto aqui pela importância que teve mas também para encontrar pretexto para falar, aqui e agora, do excelente último romance de Helder Macedo, "Tão longo amor tão curta a vida", que o vem confirmar decididamente como o grande escritor português da actualidade. Claro que ele não precisa de Hitchcock para nada, basta-lhe a literatura portuguesa, em que declina a sua ascendência, o teatro (Shakespeare), a ópera (Verdi), a pintura (alguns impressionistas franceses em cenário londrino), a música (Schubert) e o trivial da psicanálise (Freud, Lacan) para escrever prosa a partir da poesia, como ele próprio diz, de uma maneira perfeitamente siderante, em que descreve a escrita, o processo imaginário da escrita do próprio livro, para nosso espanto e assombro. É um romance actual, curto e perfeito, em que o autor, como de costume, joga com diferentes níveis de construção literária e faz as personagens saírem do seu meio de origem, o que talvez lhe venha mesmo de Bernardim Ribeiro e Camões, a quem dedicou estudos muito importantes. E isto vem a propósito porque em "Tão grande amor tão curta a vida", sem precisar de Hitchcock para nada Helder Macedo dá a volta que ele deu no seu "Vertigo" e mais algumas outras de seu próprio alvedrio.
Ora este grande romance português deste grande escritor português é absolutamente prioritário em relação à esmagadora maioria dos filmes estreados e a estrear este ano em Portugal.
Apenas agradeço à vida ter-me permitido conhecer os filmes de Jacques Demy, de "Lola" à exposição que agora lhe dedica a Cinemateca Francesa. Tudo o mais, incluindo Jean Renoir, Hitchcock, Pialat e Helder Macedo, me foi dado por acréscimo - e o que eventualmente me tiver sido tirado, como a fotografia de Jeanne Moreau ausente no espaço dedicado a "La Baie des Anges" nesta exposição no dia em que a visitei, nem sequer lhe sinto a falta.
Para mim, foi, é e será sempre Nantes de "Lola" de Jacques Demy, e amanhecia - apaixonado abandonado, marinheiro americano de uma noite, pai inesperadamente regressado e rico. Regressar mais de 50 anos depois ao universo mágigo de Jacques Demy - Nantes (a que ele regressaria em 1982 para "Une Chambre en Ville"), Cannes, Monte Carlo e Nice com os seus casinos, Cherbourg, Rochefort, Los Angeles (onde foi recuperar Lola e Anouk Aimée 8 anos depois para "The Model Shop"), Paris (ainda a tempo de reapanhar Jean Marais para "Parking", 1985), Marselha (onde ainda apanhou Yves Montand para "Trois places pour le 26", 1988) - é mais, muito mais do que alguma vez poderia esperar ou desejar. Agradeço à vida que mo permitiu.
Para mim, foi, é e será sempre Nantes de "Lola" de Jacques Demy, e amanhecia - apaixonado abandonado, marinheiro americano de uma noite, pai inesperadamente regressado e rico. Regressar mais de 50 anos depois ao universo mágigo de Jacques Demy - Nantes (a que ele regressaria em 1982 para "Une Chambre en Ville"), Cannes, Monte Carlo e Nice com os seus casinos, Cherbourg, Rochefort, Los Angeles (onde foi recuperar Lola e Anouk Aimée 8 anos depois para "The Model Shop"), Paris (ainda a tempo de reapanhar Jean Marais para "Parking", 1985), Marselha (onde ainda apanhou Yves Montand para "Trois places pour le 26", 1988) - é mais, muito mais do que alguma vez poderia esperar ou desejar. Agradeço à vida que mo permitiu.
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