“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 7 de abril de 2013

Os esquecidos

          Depois da nouvelle vague francesa e dos que se lhe seguiram imediatamente, Philippe Garrel e Jean Eustache, e antes dos cineastas, hoje consagrados, que se revelaram em França durante os anos 80, há alguns cineastas muito bons que ficaram como que na sombra de uns e dos outros e, por isso, tendem a ser esquecidos. Imerecidamente esquecidos. Chamam-se eles André Téchiné, Jacques Doillon e Benoît Jacquot.
        Salvo o primeiro, e mesmo assim limitadamente, estes são cineastas escassamente conhecidos e estimados em Portugal, onde os seus filmes chegam espaçadamente e são, por isso, bastante mal conhecidos. Contudo, foram eles que primeiro enfrentaram a pesada responsabilidade de chegar ao cinema a seguir à nouvelle vague francesa, de a continuar ou a negar numa altura em que ela tendia para o esquecimento. Nesse momento como agora estiveram inteiramente à altura do que se podia esperar e desejar, contando-se entre os melhores cineastas gauleses contemporâneos, embora tendam, por sua vez, a cair no esquecimento ou/e a serem minimizados. Injustamente, o que hoje me traz aqui.
                    
       O mais recente filme de Benoît Jacquot, "Adeus, Minha Rainha"/"Les adieux à la reine" (2012), é um filme muito original e bem feito por, ao ocupar-se de um assunto muito conhecido e tratado, inclusivamente pelo cinema - os dias que se seguiram à tomada da Bastilha em 1789 vistos do lado Família Real que então, sem o saber, começava a viver os seus últimos dias -, assumir um ponto de vista exterior embora implicado, que funciona como o de uma testemunha qualificada: o da leitora da Rainha, Sidonie Laborde/Léa Seydoux.
         Como leitora da Rainha, Sidonie, e o filme com ela, segue sobretudo Marie Antoinette/Diane Kruger e o mundo de mulheres que a rodeia, em especial a sua relação com Gabrielle de Polignac/Virginie Ledoyen, um meio com as suas preocupações próprias mesmo naquele momento de grande aflição - o argumento é do realizador e Gilles Taurand, baseado em romance de Chantal Thomas. E quanto mais Sidonie é remetida para a sua insignificância, mais facilmente ela está presente, despercebida, nos momentos de intimidade que era suposto não passarem daí.
                    
          Fiel à subjectividade assim introduzida em Versailles, Benoît Jacquot faz-nos atravessar com Sidonie corredores, escadas, salas, quartos e alcovas, pondo-a a dialogar com todos, homens e mulheres - destaque entre os primeiros para Moreau/Michel Robin, o arquivista de Versailles -, em especial com Madame Campan/Noémie Lvovsky e com a Rainha. O povo, a Revolução que então começava, está ausente, fora de campo - e essa é uma história também muito conhecida e repetidamente tratada pelo cinema -, mas a simples presença de Sidonie, entre outros serventuários da família real, mantém permanentemente presente a possibilidade desse ausente deste filme - como o era de "A Inglesa e o Duque"/"L'anglaise et le duc", de Eric Rohmer (2001) -, ela que tem o acesso ao saber que lhe advém da leitura e sobre cujo passado nada se sabe.
         Filmado no próprio Palácio de Versailles, e também noutros locais históricos escolhidos cuidadosamente para certos interiores, "Adeus, Minha Rainha" apresenta esse motivo cenográfico de interesse especial, que contudo não esmaga as personagens a não ser na dimensão do momento histórico que vivem e no significado do modo como o vivem, para o que o cineasta escolhe os apropriados pontos de vista da câmara, nomeadamente o plano geral, o plano médio e o plongé. Visto quase sempre à distância, Luís XVI/Xavier Beauvois não passa, por isso, de uma silhueta, mas à Rainha é dado um outro destaque, o que permite que, sempre pelos olhos de Sidonie, nos seja dado de Marie Antoinette tanto o lado da mulher como o lado da Rainha, com uma Diane Kruger sempre muito bem. 
                    
            Na sua aparente insignificância, Sidonie acaba por ser escolhida para acompanhar como isco Gabrielle e o marido na sua fuga, ela de quem nunca sabemos nada de pessoal e que para si própria no final guarda o segredo da sua identidade e da sua insignificância - excelente Léa Seydoux, como em "Irmã"/"L'enfant d'en haut", de Ursula Meier, do mesmo ano (ver "Humildes", 25 de Março de 2013). Fiel à sua Rainha. Até ao fim.
           Benoît Jacquot mostra uma grande mestria no ponto de vista escolhido e na persistência com que o segue, na escolha e no tratamento dos espaços, nomeadamente quando parece esquecê-los para perseguir neles e através deles (os corredores) as suas personagens e quando capta a solidão destas, e em especial na iluminação de interiores nocturnos - notável a fotografia de Romain Winding. Como André Téchiné e Jacques Doillon, ele é um grande cineasta que não merece, em caso algum, o lugar de quase esquecimento para que tem sido relegado pela distribuição comercial portuguesa - em benefício, acrescente-se, de outros cineastas, franceses e mesmo europeus, de muito menor relevo.

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