No seu melhor, o cinema não tem que seguir o que, ou limitar-se ao que já foi feito nas outras artes, nomeadamente na literatura, mesmo quando nelas se inspira. De facto, para ser uma arte autêntica e viva, o cinema deve avançar com iniciativas próprias, com propostas próprias e leituras próprias da herança que recebeu das outras artes, com as quais continua a relacionar-se - uma herança com a qual não tem que se conformar servilmente e uma relação em que não deve permanecer meramente passivo. Não li o livro mas vi o filme, ou não vi o livro mas li o filme são lugares-comuns que exprimem um certo desconforto intelectual perante aquilo que verdadeiramente interessa: ler os livros e ver os filmes, ver os filmes para ler os livros e aos filmes regressar, ler os livros e ver os filmes para aos livros regressar.
Eu sei que os tempos vão de feição para simplificações como essas, e piores do que elas, mas um cineasta como Alexander Sokurov está aí para nos seduzir e encantar com as suas ideias pessoais e com elas nos libertar de ideias feitas. De facto, um grande cineasta, como ele sem dúvida é, existe para nos desinquietar, não para nos confirmar em ideias rasteiras que, instaladas na sua mediocridade, fazem livre curso no nosso tempo. No culminar de uma tetralogia sobre o poder, cujos filmes anteriores eram sobre personagens históricas do Século XX, em "Fausto"/"Faust" (2011) ele reconduz-nos à personagem mítica da cultura alemã na sua busca persistente do sentido da vida.
A partir de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), nome fundamental do romantismo alemão cujo poema trágico "Fausto" data de 1808 e 1832 (a primeira e a segunda parte, respectivamente), embora sem fazer tábua-rasa do que entretanto sobre ele foi feito o mais importante cineasta russo da actualidade faz neste seu filme alemão uma releitura crítica e criativa a partir da própria cultura alemã, que não desvaloriza embora também não respeite, para melhor a respeitar. Eu explico-me.
O "Fausto" de Goethe é uma obra exemplar de busca do que se não conhece e de procura do que se não tem, preocupação de uma época inquieta que procurava em épocas anteriores, mas também contra elas, a resposta para as suas inquietações e perplexidades. O "Fausto" de Sokurov situa-se numa época diferente que, sem esquecer aquela, sabe que, como escrevia Fernando Pessoa, "O único sentido íntimo das cousas/É elas não terem sentido íntimo nenhum." (Alberto Caeiro) - Fernando Pessoa que também se deixou fascinar pelo "Fausto": "O segrêdo da Busca é que não se acha." ("Primeiro Fausto - Primeiro Tema - O Mistério do Mundo"). A partir daí, que é onde estamos todos desde então, todas as variações de aproximação e abordagem são possíveis e permitidas, o que o cineasta usa com inteligência e distanciamento, sem fazer do seu espectador ignorante nem estúpido.
Em "Fausto" de Alexander Sokurov entra-se a partir de cima, i. e., desce-se para uma autópsia que o protagonista está a fazer na tentativa de no cadáver encontrar a alma, e sai-se a subir, para acompanhar a tentativa dele de responder ao apelo da voz de Marguerite, que lhe vem do alto, depois de ter visto o poço de água escaldante, de ter recusado as novas propostas de Mauricius Müller, a sua alma danada, e de ter tentado dar cabo dele. Entre esses dois momentos seguimos Fausto primeiro no interior de um espaço fechado, uma aldeia, onde ele, na sua passividade inquieta, deambula entre as gentes, de um pai médico que pratica autópsias à família da jovem mulher que ama, Marguerite, cujo irmão, Valentin, mata. Sozinho ou acompanhado pelo seu assistente, Wagner, recorrentemente assediado por um mefistofélico Mauricius.
Que quer, que procura ele? Aparentemente não lhe interessa um elixir da juventude, já que é novo, nem um poder, para além do que lhe permita chegar a Marguerite, para o que transige, já com o filme muito adiantado, em assinar com o seu próprio sangue o contrato que para tal lhe é proposto.
Tudo o diferencia, pois, do "Fausto" de Friedrich W. Murnau (1926), mais próximo da sua fonte literária no seu expressionismo, pois o Fausto de Sokurov pode queixar-se apenas de enfado, de tédio. De resto, parece ter tudo de que precisa, a própria morte de Valentin parece mais o fruto de um acaso fastidioso. E é depois do enterro deste que saímos de forma mais continuada para os exteriores, com referências fantásticas (o homunculus) e alusões alquímicas, até ao momento em que, em resposta ao contrato assinado, o protagonista cai com a sua amada no lago, no único momento com cor normal e luz natural de todo o filme.
Sendo a tetralogia que este filme encerra sobre o poder, e o poder no Século XX, "Fausto" de Sokurov situar-se-á temporalmente antes dos outros três filmes, pelo que vem conferir um carácter circular à própria tetralogia. Depois do noivado branco, o mergulho no lago, orgásmico, com Marguerite, e tudo parece consumado na primeira morte do protagonista. Fausto rasga o contrato e, revestindo primeiro armadura, parte acompanhado pelo seu misterioso companheiro, depois de ter encontrado os mortos, nomeadamente o seu morto, Valentin, num rio que antecede o Hades.
Obviamente que o filme de Sokurov não se pretende um simples estudo psicológico, embora também possa ser visto como tal: do fastio, do tédio e da tentativa de dele sair. O lado romântico é forte e vence, no meio do negrume, do aglomerado, da confusão, numa personagem que de si própria pouco sai: para além de assistir, matar Valentin, possuir Marguerite. Pequena ambição? Talvez, mas mesmo assim ambição de paixão oitocentista, erguida contra o passado e o seu próprio tempo.
Que quer, que procura ele? Aparentemente não lhe interessa um elixir da juventude, já que é novo, nem um poder, para além do que lhe permita chegar a Marguerite, para o que transige, já com o filme muito adiantado, em assinar com o seu próprio sangue o contrato que para tal lhe é proposto.
Tudo o diferencia, pois, do "Fausto" de Friedrich W. Murnau (1926), mais próximo da sua fonte literária no seu expressionismo, pois o Fausto de Sokurov pode queixar-se apenas de enfado, de tédio. De resto, parece ter tudo de que precisa, a própria morte de Valentin parece mais o fruto de um acaso fastidioso. E é depois do enterro deste que saímos de forma mais continuada para os exteriores, com referências fantásticas (o homunculus) e alusões alquímicas, até ao momento em que, em resposta ao contrato assinado, o protagonista cai com a sua amada no lago, no único momento com cor normal e luz natural de todo o filme.
Sendo a tetralogia que este filme encerra sobre o poder, e o poder no Século XX, "Fausto" de Sokurov situar-se-á temporalmente antes dos outros três filmes, pelo que vem conferir um carácter circular à própria tetralogia. Depois do noivado branco, o mergulho no lago, orgásmico, com Marguerite, e tudo parece consumado na primeira morte do protagonista. Fausto rasga o contrato e, revestindo primeiro armadura, parte acompanhado pelo seu misterioso companheiro, depois de ter encontrado os mortos, nomeadamente o seu morto, Valentin, num rio que antecede o Hades.
Obviamente que o filme de Sokurov não se pretende um simples estudo psicológico, embora também possa ser visto como tal: do fastio, do tédio e da tentativa de dele sair. O lado romântico é forte e vence, no meio do negrume, do aglomerado, da confusão, numa personagem que de si própria pouco sai: para além de assistir, matar Valentin, possuir Marguerite. Pequena ambição? Talvez, mas mesmo assim ambição de paixão oitocentista, erguida contra o passado e o seu próprio tempo.
O "Fausto" de Alexander Sokurov é um filme superior, na linha dos anteriores filmes do cineasta e dos filmes desta tetralogia, "Moloch"/"Molokh" (1999), "Taurus"/"Telets" (2001) e "The Sun"/"Solntse" (2005), que encerra voltando a um tempo antes dos outros, porque nos diz que nada vale a pena porque tudo vale a pena, mesmo essa coisa tão simples e banal como uma mulher que se ama ou deseja. Servindo-se livremente do texto original, de que altera a localização de excertos e que acrescenta livremente, o cineasta faz uma leitura pessoal do mito que acaba por respeitar mesmo se subvertendo-o e actualizando-o, com frequente regresso ao texto de Goethe mas para o ler à sua maneira.
O que manifestamente mais interessa o cineasta é o tratamento formal, com um tratamento da cor experimental e assombroso, para o que se inspirou no "Tratado das Cores" do próprio Goethe, em que as cores num mesmo plano variam na superfície, nas superfícies dos objectos e dos seres, como se fossem pintadas - a direcção de fotografia é de Bruno Delbonnel. Como em "Mãe e Filho"/"Mat i syn"(1997) existem também distorções da imagem, na maior parte dos casos com a presença ou a proximidade de Mauricius, além do que a profundidade de campo é negada em vários momentos, o que acentua o facto de que neste filme de Sokurov interessa menos o espaço, tão importante no "Fausto" de Murnau que para ele Eric Rohmer chamou muito pertinentemente a atenção num estudo célebre (1), do que a própria superfície imagem. Mas este lado formal, muito importante e conseguido, não deve ser dissociado das variações introduzidas no mito, com alterações ao texto original, que é também acrescentado por um argumento do próprio Sokurov e Youri Arabov, com relevante participação de Marina Koreneva.
Desse modo, longe do expressionismo do filme de Murnau, o "Fausto" de Alexander Sokurov pretende, de uma maneira não realista nem naturalista, descer até às trevas românticas para delas sair em branco, em luz, ascendendo depois ao encontro de quem interessa, lhe interessa e o chama. Possível a referência a Nietzsche, certa a referência a Lenz para aumentar a carga de arrebatamento a partir do retrato que dele fez Georg Büchner, o filme resolve-se sobre o "Fausto" de Goethe (e em parte, mas só em parte contra ele), porque é obra pessoal de um grande criador, de um grande cineasta que é também um grande artista. Justo e compreensível o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2011.
Desse modo, longe do expressionismo do filme de Murnau, o "Fausto" de Alexander Sokurov pretende, de uma maneira não realista nem naturalista, descer até às trevas românticas para delas sair em branco, em luz, ascendendo depois ao encontro de quem interessa, lhe interessa e o chama. Possível a referência a Nietzsche, certa a referência a Lenz para aumentar a carga de arrebatamento a partir do retrato que dele fez Georg Büchner, o filme resolve-se sobre o "Fausto" de Goethe (e em parte, mas só em parte contra ele), porque é obra pessoal de um grande criador, de um grande cineasta que é também um grande artista. Justo e compreensível o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2011.
Actualidade de
Goethe e Nietzsche? Talvez, e nessa medida um convite para os revisitar, conhecer e conhecer a fundo até nas suas origens e
consequências, para perceber o que aqui está em jogo. Remeto-vos, pois,
directamente para o filme de Sokurov, um grande filme de um dos maiores
cineastas contemporãneos, e para a edição portuguesa do "Fausto" de
Goethe, com tradução de João Barrento, que agora vai ser reeditada. O
que eu temo, e penso que devemos todos temer, é a ignorância, não o
conhecimento, o que me leva a remeter-vos também para o anjo da
história, o de Walter Benjamin mas especialmente, neste momento, o de
Giorgio Agamben, embora ainda, e lamentavelmente, não traduzido em português: "Archéologie philosophique", in "Signatura rerum - Sur la méhode" (Paris, Vrin, 2008, pág. 93).
Se o "Fausto" de Goethe tinha um lado intemporal, o de Sokurov também o tem. Como há mais de 50 anos escrevia Jean-Luc Godard, o cinema é uma arte como as outras, com os seus próprios grandes nomes comparáveis aos grandes nomes de cada uma das outras artes, literatura, música ou pintura, o que Gilles Deleuze veio enfaticamente demonstrar e confirmar. Ora Alexander Sokurov é um grande cineasta, dos maiores do nosso tempo, e o seu "Fausto" um enorme filme, inquieto e perturbador (2).
Notas
(1) Cf. Eric Rohmer, "L'organisation de l'espace dans le «Faust» de Murnau", Paris, Union Générale d'Edtions, 1977.
(2) A bibliografia sobre Sokurov é neste momento vasta e diversificada, e dela permito-me destacar "The Cinema of Alexander Sokurov", editado por Birgit Beumers e Nancy Condee, London-New York, I. B. Taurus, 2011.
Se o "Fausto" de Goethe tinha um lado intemporal, o de Sokurov também o tem. Como há mais de 50 anos escrevia Jean-Luc Godard, o cinema é uma arte como as outras, com os seus próprios grandes nomes comparáveis aos grandes nomes de cada uma das outras artes, literatura, música ou pintura, o que Gilles Deleuze veio enfaticamente demonstrar e confirmar. Ora Alexander Sokurov é um grande cineasta, dos maiores do nosso tempo, e o seu "Fausto" um enorme filme, inquieto e perturbador (2).
Notas
(1) Cf. Eric Rohmer, "L'organisation de l'espace dans le «Faust» de Murnau", Paris, Union Générale d'Edtions, 1977.
(2) A bibliografia sobre Sokurov é neste momento vasta e diversificada, e dela permito-me destacar "The Cinema of Alexander Sokurov", editado por Birgit Beumers e Nancy Condee, London-New York, I. B. Taurus, 2011.
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