O francês Bruno Dumont é um cineasta sério e exigente que, para permanecer fiel a si próprio e a um conceito pessoal de cinema poético, corre o risco de ficar aquém daquilo que promete, ou, pelo menos, do que dele esperamos. Digo isto porque "Camille Claudeln 1915" (2013), agora estreado em Portugal, prometendo embora um projecto dreyeriano ou bressoniano, se fica por uma secura justa mas desarmante, mais próximo, em todo o caso de um processo que de uma paixão.
Havia aqui o precedente do filme de Bruno Nuytten, "A Paixão de Camille Claudel"/"Camille Claudel" (1988), com Isabelle Adjani e Gérad Depardieu, que se debruçava sobre a relação de Camille com Auguste Rodin, uma relação artisticamente frutuosa mas também tumultuosa, que era um filme muito bom. Por isso Dumont escolhe um período posterior a essa relação para surpreender Camille/Juliette Binoche na sua reclusão por, na sequência da sua separação de Rodin, ter apresentado sintomas de paranóia e esquizofrenia, para o que se baseia na sua correspondência e nos escritos do seu irmão, Paul Claudel/Jean-Luc Vincent.
A loucura é sempre um extremo doloroso para aquele que atinge e para quem com ela convive. Ora aqui o cineasta mantém-se estritamente amarrado ao que está documentado sobre a personagem verídica, evitando a especulação ou assumir um ponto de vista definido, a favor ou contra quem quer que seja. O que podia ser, e até certo ponto é, um trunfo do filme torna-se, desse modo o seu principal limite: o filme sobre a paixão estava feito, restava a Bruno Dumont fazer o filme do processo.
As liberdades que o cineasta se permitiu nos seus filmes anteriores, nomeadamente em "Hadewijch", 2009, e "Fora, Satanás"/"Hors Satan", 2011 (ver "A dignidade do cinema", 30 de Julho de 2012), ficam assim limitadas pelos documentos autênticos em que se baseou, embora para sobre eles adoptar uma inspiração livre, o que lhe impede os arroubos de Carl Th. Dreyer em "A Paixão de Joana d'Arc"/"La Passion de Jeanne d'Arc" (1928), antes o amarra aos propósitos de Robert Bresson em "Procés de Jeanne d'Arc" (1962) - o que quer dizer que impede o filme de ser a paixão, o que seria redundante, e o torna o processo possível de Camille Claudel. Temos, pois, um filme austero sobre alguém que se separou, foi separada da vida e enclausurada num hospício psiquiátrico no Sul de França, onde a instâncias familiares viria a acabar os seus dias. E aí é depois de assistir ao ensaio de uma representação dom juanesca de outros internados que ela parece assumir uma maior consciência de si e da sua situação.
Centrado embora nela, o filme consegue habilmente criar a distância justa ao introduzir, na sua segunda parte, a personagem do irmão de Camille, o escritor Paul Claudel, que acaba por trazer distância, a que é permitida por um outro olhar, um outro ponto de vista, normal. E o que isso tem de mais interessante é esse irmão, desde cedo um católico fervoroso, que foi diplomata e figura destacada da literatura francesa da primeira metade do Século XX, ter sido parte importante na insistência familiar na reclusão de Camille, que ele próprio custeou, em lugar de uma vida em ambiente familiar, o que por si mesmo permite inverter o ponto de vista do filme ao ocupar-se também do caso dele.
De facto, ao mostrar um Paul Claudel perfeitamente seguro da sua superioridade moral, o filme de Bruno Dumont questiona-o mais a ele do que a Camille, serena e não apaziguada na segura, contida e por isso muito expressiva interpretação de Juliette Binoche. Ai dos que se proclamam superiores e normais e por isso se permitem, com segura arrogância, julgar os que pensam não o serem - superiores e normais. Por muito seguro de si próprio que ele pareça e seja, útil mesmo para a compreender a ela, acaba por ser a sua fria seguraça a ser questionada do ponto de vista humano por quem ele julga dominar do alto da sua superioridade.
É um filme demasiado frio? Sim, é. Mas é muito esclarecedor. Fora de campo, o génio de Rodin, que viria a morrer dois anos depois, continua presente, mas nós somos levados a acompanhar o destino da sua parceira e cúmplice no percurso asilar a que o fim da sua relação a votou. Mito maior da cultura francesa do final do Século XIX e do início do XX, e uma grande escultora (excelente o momento em que ela manuseia um pedaço de barro, como se procurasse recordar), Camille Claudel é aqui uma mulher só, abandonada por todos e entregue ao seu destino, como aqueles que amaram em extremo, em excesso, sem se protegerem.
"Camille Claudel 1915" é um grande filme, frio é certo, mas sincero e crítico de um grande cineasta. Para o certificar, só sobre o genérico final surge a música, a Missa Solemnis BWV 232 de J. S. Bach.
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