“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 22 de junho de 2013

Poética dos actores

     Houve quem escrevesse sobre uma "política dos actores" (Luc Moullet, "Politique des acteurs", Paris, Cahiers du Cinéma, 1993) e foi divertido e pertinente, até para afastar a obsessão da "política dos autores", que foi uma coisa séria que não deve, contudo, ser levada demasiado a sério - ou então deve ser mesmo radicalmente defendida e praticada. Simplesmente, os exemplos então utilizados foram todos de actores do cinema clássico americano - de actores muito bons e muito respeitáveis mas passados. E hoje, como poderá essa questão ser equacionada?
     O Método do Actors Studio veio desvirtuar um tanto a questão, porque originou actores camaleónicos, capazes de interpretar qualquer papel, qualquer personagem com a mesma qualidade, com a mesma convicção - e o cinema é uma questão de convicção, acreditar e fazer acreditar. Numa actualização de uma "política dos actores" prefiro falar numa "poética dos actores", daqueles que fizeram acreditar naquilo que de original criaram em filmes, de filme para filme.
                      Tony Soprano The Sopranos star James Gandolfini dead at 51
        Prefiro, assim, falar no que de pessoal e original certos actores trouxeram àquilo que fizeram para cinema e televisão. Falar naquilo que de pessoal e intransmissível eles trouxeram para o meio de nós. James Gandolfini (1961-2013), evidentemente.
     Quem como ele nos fez acreditar em homens solitários, confusos e confundidos na sua auto-suficiência nos filmes que interpretou, entre o excesso e a contensão? Quem como ele foi inteiramente aqueles que interpretou sem deixar de ser ele próprio, com sabedoria, inteligência e sensibilidade? Robert de Niro com o Método ou Tommy Lee Jones sem ele? 
     Eu sou um ser primitivo e primordial, que me reconheço em actores que como tal me moldaram, me deformaram se quiserem. James Gandolfini era dos meus, capaz de tornar um mafioso mais humano do que muitos que o não são. Havia, há na arte deste actor notável alguma coisa que nos pertence a todos, como espectadores, que nos acrescenta.
                   
       Não quero aparentar o excesso de emoção que me invade neste momento, mas a morte é sempre, para quem provisoriamente fica, um revelador. No momento da morte deste grande actor, eu proponho uma poética dos actores, que pode remeter para o seu justo lugar as ideias oportunamente esgrimidas na praça pública do cinema (ver "Um autor americano", 30 de Maio de 2013).            
       Quem, como James Gandolfini, foi cada um de nós no final do Século XX e no início do XXI, nomeadamente em "Os Sopranos"/"The Sopranos" entre 1999 e 2007? Para mais numa época de justo destaque das mulheres, quem como ele nos deu esse lado secreto que nos caracteriza como homens, de forma aberta, sem pudores ou com os pudores interiorizados? Quem como ele, de origem italiana? Por mim, só Tommy Lee Jones, que não é de ascendência italiana, que eu saiba - antes dele Peter Falk, em Portugal Pedro Hestnes. Há neles um saber do humano que não se transmite de forma automática nem se mima de forma mecânica, antes se constrói a partir do que se é e do que se não é - de uma personalidade.
                     Actor James Gandolfini of 'Sopranos' fame dies at 51
       James Gandolfini foi, é cada um de nós, no olhar, no sorriso, no ar pessoal com que olha para fora sem deixar de se abismar para dentro, e isso talvez seja mais importante do que ser autor reconhecido e galardoado do cinema. Não quero contestar a política dos autores, ou a teoria deles, questão agora ressuscitada pela crítica mais proeminente, nem uma poética dos autores, proposta no seu tempo por Jean-Claude Biette (in "Poétique de auteurs", Paris, Cahiers du Cinéma, 1988), mas acrescento-lhes uma poética dos actores que foram eles próprios de forma transbordante e se excederam em tudo aquilo que fizeram, até ao fim. Ele foi tão grande e tão importante como Clark Gable ou Humphrey Bogart, de quem Luc Moullet não fala, foram no seu tempo, e é preciso percebê-lo e reconhecê-lo. A aura do único no cinema, na televisão passou por ele, como só passou e passa pelos grandes, pelos muito grandes.
      James Gandolfini foi Tony Soprano, tornando-o semelhante a cada um de nós por ser, ele próprio, como cada um de nós. Poucos como ele se podem gabar de tal feito em qualquer época da história do cinema. Se, hoje em dia, se pode ouvir o silêncio ao andar de bicicleta em Lisboa, não é por causa de Fernando Pessoa ou de Herberto Helder, do Requiem de Mozart ou da Sonata nº 23, Opus 57, de Beethoven, mas por causa dele. O meu profundo respeito e o meu maior apreço neste momento.

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