Cristian Mungiu é um dos nomes mais importantes do "cinema novo" romeno, de quem já conhecíamos "4 meses, 3 semanas e 2 dias"/"4 luni, 3 saptamâni si 2 zile" (2007) e "Histórias da Idade do Ouro"/"Amintiri din epoca de aur" (2009) (ver "Gente comum", 26 de Janeiro de 2013), e dele nos chegou agora o seu mais recente filme, "Para Lá das Colinas"/"Dupa dealuri" (2012), aguardado com a expectativa que os filmes anteriores justificavam.
Sem defraudar essa expectativa, este é um filme que, baseado em factos reais, é construído pelo realizador a partir de um argumento da sua autoria (como já sucedia nos anteriores) de uma extrema violência concentracionária, no caso monacal, vivida por mulheres em convívio com o seu líder espiritual masculino, o padre que tratam por Pai/Valeriu Andriuta, e sobretudo com uma intrusa, Alina/Cristina Flutur, que, regressada da Alemanha à Roménia em busca de uma companheira de orfanato que ali vive, Voichita/Cosmina Stratan, vai trazer para aquele meio a confusão e o conflito devido à sua instabilidade psicológica, então plenamente revelada.
A violência física e psicológica do conflito vivido naquela comunidade ortodoxa é, sem qualquer distância, salvo no final, restituída pelo filme em toda a sua morbidez e negrume. Por esse motivo, este é um filme que, embora muito verdadeiro, se torna terrivelmente perturbador por não dar ao espectador qualquer ponto de referência sólido na realidade exterior, salvo nas duas deslocações de Alina ao hospital, a primeira para um internamento temporário, a segunda para a pura e simples verificação do seu óbito. Entre esses dois momentos, e mesmo desde o seu início, o filme segue as peripécias e dificuldades de uma mulher perturbada que quer à viva força convencer a amiga a partir consigo para a Alemanha, e a séria perturbação que a sua estadia naquele meio provoca.
Se podemos compreender o conflito, e podemos, é-nos muito difícil a ele aderirmos completamente devido à distância cultural que nos separa da religião ortodoxa romena. Por isso, e apesar da distância introduzida muito apropriadamente no final - aquele foi um caso clínico que, partindo do pressuposto da possessão, o convento tentou tratar através do exorcismo e que acaba na acusação de homicídio na sequência de violências -, o mais longe que podemos ir a respeito deste "Para Lá das Colinas" é identificar nele momentos muito curiosos relativos a uma prática religiosa que nos é estranha - ver por todos a "lista dos pecados" a confessar. Mas ao colocarmos a questão desta maneira estaremos provavelmente a ser injustos por não identificarmos neste filme também o clima da Europa Oriental, desses terríveis e temíveis Cárpatos em que, na pena de Bram Stoker, nasceu Drácula, que tão larga posteridade teve no cinema e poderá não andar muito longe deste filme.
Abrindo assim a leitura do filme para uma região e um tempo histórico mais largo, com a sua cultura própria e as suas tradições específicas, talvez possamos aceder melhor ao âmago do conflito do filme, que acaba por inteligentemente colocar o progresso alheio, estrangeiro, sob o anátema da patologia e da origem do mal, dos males que traz àquela comunidade ancestral e fechada. Desse ponto de vista "Para Lá das Colinas" torna-se mais compreensível e acessível, embora sem perder em nada da sua enorme violência.
Talvez se possa considerar mérito do cinema ele permitir o uso que dele aqui Cristian Mungiu intransigentemente faz, mostrando de forma clara uma sociedade dilacerada entre tradição e modernidade. Talvez o filme se mantenha mesmo fiel a essa contradição básica do ponto de vista narrativo e da própria realização cinematográfica. Talvez justamente por isso este deva ser considerado um grande filme, até um filme indispensável. Mas é sufocante na sua justeza sem concessões, em que residirá a sua principal qualidade.
Permito-me remeter-vos a este respeito para a resposta de Jean-Claude Carrière a Umberto Eco, em que, num outro contexto, ele considera que, mais do que "a cocaína do povo", a religião é "uma mistura de ópio e cocaína", e, retrospectivamente, "o marxismo e o nazismo como duas estranhas religiões pagãs." (in "A Obsessão do Fogo", de Umberto Eco e Jean Claude Carrière, edição portuguesa DIFEL, Lisboa, 2009, pág. 176). E digo isto porque considero a religião um elemento central deste filme, que as suas, aliás notáveis, personagens femininas e actrizes não devem impedir de como tal identificar e reconhecer.
Permito-me remeter-vos a este respeito para a resposta de Jean-Claude Carrière a Umberto Eco, em que, num outro contexto, ele considera que, mais do que "a cocaína do povo", a religião é "uma mistura de ópio e cocaína", e, retrospectivamente, "o marxismo e o nazismo como duas estranhas religiões pagãs." (in "A Obsessão do Fogo", de Umberto Eco e Jean Claude Carrière, edição portuguesa DIFEL, Lisboa, 2009, pág. 176). E digo isto porque considero a religião um elemento central deste filme, que as suas, aliás notáveis, personagens femininas e actrizes não devem impedir de como tal identificar e reconhecer.
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