“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 31 de agosto de 2013

Imprescindível

     O americano Charles Burnett é um dos nomes adiantados por Gilles Deleuze a propósito de um "cinema político" dos negros americanos (1). O seu filme de estreia, que foi também o seu filme de fim de curso na UCLA, "Killer of Sheep" (1977), é um exemplo maior de um cinema que se questiona a si próprio, aos seus meios e ao seu uso, num quadro de cinema independente.
                      Charles Burnett, Killer of Sheep, 1977. 
      Filmado no Harlen, este filme limita-se a mostrar personagens no seu dia a dia, personagens comuns de todas as idades e condições, que assim nos surgem num quotidiano desligado de uma acção, em simples "estados  emocionais ou pulsionais quebrados" (2), cuja existência o filme identifica e mostra. Centrado embora num casal, de que ele, Stan, é o killer of sheep do título, são-nos dados de todas as personagens, a começar pelo próprio casal e seus filhos, além de palavras, posturas físicas, pequenos gestos e expressões do quotidiano que as individualizam, falam pelo que cada uma delas cala, explicam melhor o que cada uma delas diz. Assim são apresentados movimentos de atracção, movimentos agressão, momentos de sedução, momentos de deriva e solidão, mas também, e até sobretudo, é sugerida a vivência comum de um inelutável sentimento de comunidade e de pertença. Um convite para um esboço de acção é declinado pelo protagonista.
   Exemplo maior do cinema independente americano, "Killer of Sheep" é uma autêntica preciosidade na memória negra americana e no próprio cinema americano. Jogando com o ponto de vista, a escala dos planos e a sua duração, Charles Burnett consegue tornar o preto e branco um processo realista e expressivo, de que tira o melhor proveito nomeadamente graças ao tratamento da luz de modo a obter em certos momentos contrastes de claro/escuro. E o filme questiona e responde "o que é a América para mim?", o protagonista diz que ele não é pobre, pobre é um outro, uma voz proveniente do fora de campo acusa "tu não és uma boa mulher", numa banda sonora em que a música tem sempre grande relevo.                    
                    
      Neste questionamento do próprio medium, Burnett questiona o meio e questiona o espectador de maneira exemplar e exemplarmente política. Sabe-se como na mesma década de 70 surgiu o cinema dito de blaxpoitation, que teve também o seus nomes de referência, como Melvin Van Peebles e Gordon Parks, cujos filmes são hoje parte indeclinável do património cinematográfico norte-americano, mas aqui estamos perante uma espécie de primitivo do cinema dos negros americanos, confrontados com os meios de filmarem a sua própria comunidade num meio comum muito relevante.
    Entre gente de trabalho, miúdos que jogam para se divertirem e desafiarem, malandragem, ociosos, com muito escassa presença de brancos, este filme, que termina com a revelação inesperada de uma gravidez e a actividade comum do protagonista no matadouro, é absolutamente imprescindível para conhecer o melhor do cinema americano dos anos 70 do Século XX, até porque é assinalado por um uso superior da linguagem do cinema - o matadouro, o rebanho - que, do real concreto ao metafórico, identifica um grande cineasta. Ainda hoje exemplarmente moderno e político, "Killer of Sheep", tomando como centro o bairro de Harlen em 1977 nem sequer o apresenta como lugar de especial marginalização racial e social (embora ela esteja obviamente implícita) mas como local onde poderá vir a ser possível a tomada de consciência de si própria de uma população.

Notas
(1) Cf. Gilles Deleuze, "L'image-temps", Paris, Les Éditions de Minuit, 1985, páginas 286-287. 
(2) Idem, ibidem (a tradução é minha).

Sem comentários:

Enviar um comentário