O último filme de Pascal Bonitzer, um nome importante do cinema francês primeiro como crítico e ensaísta (1), depois como argumentista (nomeadamente em filmes de Jacques Rivette, André Téchiné, Raoul Ruiz) e realizador, "Cherchez Hortense" (2012), é uma pequena pérola do cinema, uma comédia de inspiração lubitschiana em que reverbera uma grande liberdade sob um completo domínio formal e narrativo. Com um Jean-Pierre Bacri em grande forma e Claude Rich, um actor que trabalhou com René Clair, Jean Renoir, François Truffaut, Alain Resnais, entre muitos outros, no papel do seu pai, este filme manifesta inspiração lubischiana em város pontos: as portas que abrem e fecham, as repetições e as correspondências, com os indícios de falta a que Gilles Deleuze chamou em Ernst Lubitsch "imagem-raciocínio" - se isto, então aquilo - e os indícios de equivocidade - uma muito pequena diferença que induz uma muito grande distância - típicos da pequena forma da Imagem-Acção (2).
O argumento de Bonitzer e Agnès de Sacy é um prodígio de inventiva. O filme começa no teatro com Iva/Kristin Scott Thomas, uma encenadora e a mulher do protagonista, Damien Hauer/Jean-Pierre Bacry, e logo na saída de carro dela e do jovem actor temos as portas. O casal tem um filho, Noé/Marin Orcand Tourrès, que se entende mal com aqueles pais, em especial com ele, o que permite prever que aquele tipo de problemas entre marido e mulher venha a ter continuidade. A imigrante proveniente dos balcãs, Aurore/Isabelle Carré, cuja situação se trata de tentar resolver graças a influências poderosas, é apenas o pretexto, o "macguffin", que faz andar a história.
Num filme todo ele atravessado por uma vaga misoginia, não surpreende a revelação da homossexualidade do pai de Damien, Sébastien Hauer/Claude Rich, surpreende é a sua possível tranferência para o filho e o modo como a sua sugestão neste surge - o momento em que o jovem chinês, Satoshi/Masahiro Kashiwagi, lhe revela o que se passou entre ambos na noite anterior, que eu nem sequer vos digo o que foi, está prodigiosamente filmado e interpretado por Bacri. Se a mulher o deixa por um homem mais novo, ele no final vai atrás da jovem Aurore, sabendo Iva o que acontece geralmente a mulheres mais velhas que se apaixonam por homens mais novos e sabendo ele o que geralmente acontece entre homens mais velhos e mulheres mais novas.
Mas o protagonista afasta-se com Aurore no final depois de ela ter abandonado a ideia de partir para a Índia com Lobatch (!), um amigo dele/Jackie Berroyer. E Damien é professor de cultura chinesa em aulas muito concorridas que ele dá de passagem, a correr, o que em qualquer caso é sintomático de que por ali passam já outros centros.
Um mês depois Damien conta ao pai o que aconteceu e oferece-lhe a pistola que retirara a Lobatch com a sugestão de que a use em si próprio, numa repetição inversa da primeira ocorrência, em que terá impedido o seu amigo de se suicidar. E quando, a meio do filme, ele apanha um táxi cujo motorista é novato e não sabe o caminho para o centro de Paris é sinalizado de maneira clara que é o próprio Damien que não sai do centro de Paris e daquele círculo, o que só vem a conseguir no final - de comboio, atrás de Aurore.
"Cherchez Hortense" é, pois, um filme inteligente e divertido, muito bem dirigido e interpretado, que além do mais toca problemas de grande actualidade sem aprofundar, ficando-se pela alusão, como lhe compete. E no final o comboio, ao contrário dos Lumière, sai do túnel e parte da gare.
Este foi o único filme a que consegui assistir durante a 14ª Festa do Cinema Francês, em Lisboa, numa sala cheia, o que deixou Pascal Bonitzer encantado e a mim satisfeito, com uma assistência que mostrou perceber e apreciar o filme. Esperemos que estreie em Portugal. Trata-se de um filme irónico e muito bom, na linha da obra anterior de um cineasta fino e culto, que merece ser conhecido.
Notas
(1) De Pascal Bonitzer, "Le regard et la voix. Essais sur le cinéma" (Paris, UGE, 10/18, 1976), "Le champ aveugle - Essais sur le cinéma" (Paris, Cahiers du Cinéma/Gallimard, 1982) e "Peinture et cinéma - Décadrages" (Paris, Cahiers du Cinéma/Editions de l'Étoile, 1985) foram livros de referência, ainda hoje indispensáveis para compreender o cinema.
(2) Gilles Deleuze, "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 220-224.
Este foi o único filme a que consegui assistir durante a 14ª Festa do Cinema Francês, em Lisboa, numa sala cheia, o que deixou Pascal Bonitzer encantado e a mim satisfeito, com uma assistência que mostrou perceber e apreciar o filme. Esperemos que estreie em Portugal. Trata-se de um filme irónico e muito bom, na linha da obra anterior de um cineasta fino e culto, que merece ser conhecido.
Notas
(1) De Pascal Bonitzer, "Le regard et la voix. Essais sur le cinéma" (Paris, UGE, 10/18, 1976), "Le champ aveugle - Essais sur le cinéma" (Paris, Cahiers du Cinéma/Gallimard, 1982) e "Peinture et cinéma - Décadrages" (Paris, Cahiers du Cinéma/Editions de l'Étoile, 1985) foram livros de referência, ainda hoje indispensáveis para compreender o cinema.
(2) Gilles Deleuze, "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 220-224.
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