“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 12 de outubro de 2013

Palavra e pensamento

         Há muitos anos que não nos chegava nenhum filme de Margaretha von Trotta, nome maior do "cinema novo" alemão dos anos 60, cujo filme de estreia, "A Honra Perdida de Katharina Blum"/"Die verlorene Ehre der Katharina Bloom", data de 1975. Foi, assim, com curiosidade e expectativa que encarei "Hannah Arendt" (2012), por ela mas também, como é evidente, pela figura da grande pensadora germano-americana de origem judaica do Século XX de que trata.
       Trabalhando sobre argumento seu e de Pam Katz, a cineasta segue Arendt numa fase crucial, de maturidade, da sua vida, o momento em que ela acompanha, para um conhecido jornal cultural americano, o julgamento de Adolf Eichmann por crimes contra a humanidade devido ao seu papel na máquina de extermínio nazi. Com uma Barbara Sukova sempre muito compenetrada e convincente no papel da protagonista, o filme aproveita bem imagens de arquivo do próprio julgamento e acompanha-a na sua vida comum, privada e universitária. Além disso, alguns flashes dão-nos imagens do passado, dos seus inícios na filosofia junto de Martin Heidegger/Klaus Pohl, sendo ela então interpretada por Friederike Becht.
                     film
       O que mais aprecio em "Hannah Arendt" é o relevo dado à palavra, não apenas como meio de comunicação mas como meio de conhecimento, isto é, como meio para expressar o pensamento, aliás controverso naquele caso por ser mal interpretado e mal recebido por muitos, da protagonista, mas também como meio de pensar o próprio pensamento, o que é a essência da filosofia. No final, muito bom, realizado em termos simples e directos, é um dos seus melhores amigos que corta relações com ela.
       Potência da palavra e independência do pensamento caracterizam, pois, este filme em que a firmeza das palavras de Hannah Arendt contrasta com as palavras hesitantes e toscas de Eichmann, mesmo se ela não consegue convencer todos - mas quem o consegue? (Não percebo é que ainda hoje se pretenda justificar Eichmann, mesmo se a partir de declarações inéditas suas, coisa que ela, ainda que eventualmente subavaliando-o, de maneira nenhuma fez.) E não me parece que as imagens da vida privada dela venham enfraquecer o poder das suas palavras e do seu pensamento, embora visem dar dela a imagem de uma mulher comum, como as outras, o que ela de maneira nenhuma se limitou a ser. Aliás, a teia de relações em que ela se move permite compreendê-la melhor e entender o meio e o mundo em que então viveu.
                              
      Este filme de Margarethe von Trotta vem muito oportunamente chamar a atenção para uma figura e um pensamento marcantes do Século XX, um pensamento de tal modo importante que ainda hoje não é possível conhecer bem o século passado sem conhecer a obra dela, aliás traduzida em português, para a qual vos remeto. Talvez que a partir deste filme e dessa obra filosófica, de filosofia política e da história, percebam que o Século XX não foi tão simples como pode parecer visto daqui - e a obra dela ajuda-nos também a compreender perplexidades e dificuldades do mundo desde o tempo dela até aos nossos dias.
       Neste filme a cineasta consegue a proeza notável de filmar a palavra da filosofia em formação e o pensamento em evolução perante circunstâncias concretas. Com uma excelente abertura, sem que a figura de Heidegger surja como fantasma e com a memória de infância de Hannah sobre o seu pai, "Hannah Arendt" de Margaretha von Trotta está inteiramente à altura da personagem. Embora faça silêncio sobre parte da vida dela, como era inevitável, não se lhe podia pedir mais. E que ainda hoje venha dividir opiniões joga decididamente a seu favor.   

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