“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sós no espaço

      O título do último filme do mexicano Alfonso Cuarón, "Gravidade"/"Gravity" (2013), tanto aponta para a ausência de gravidade e, portanto, de peso dos corpos fora da influência da atracção terrestre na situação em que as personagens se encontram, como para uma situação grave, séria. Atentas as circunstâncias do filme e da sua narrativa, tendo mais para o segundo sentido.
       Um astronauta experiente, Matt Kowalsky/George Clooney, e uma astronauta mais nova e pouco destra, Ryan Stone/Sandra Bullock, uma vez perdido o seu companheiro de viagem encontram-se sós no espaço, a contas com uma nave sujeita a uma nuvem de detritos espaciais que se aproxima e em contacto intermitente com o posto de comando em Houston, um contacto que acabam por perder. Nesta situação vão tentar ajudar-se um ao outro para atingir em segurança uma outra nave em que possam regressar à Terra.
                     Gravity
     A ficção científica é um género que se tem mostrado especialmente propício aos efeitos especiais e ao espectáculo do cinema, e nessas condições tem cumprido, umas vezes melhor, outras pior, a sua função, o que lhe tem permitido assumir um lugar de relevo no cinema contemporâneo. Como costumo dizer, ela pode vir a significar no cinema para o Século XXI uma nova epopeia, a da conquista do espaço e de novos planetas e sistemas, equivalente àquela que o western significou relativamente ao Século XIX americano.
       Ora o que singulariza "Gravidade" é o filme decorrer não numa situação de avanço mas numa situação de catrástrofe anunciada, sem que os efeitos especiais, aliás correctos e beneficiando nalguns casos do 3D, se tornem por si mesmos centrais, isto é, sem que eles se sobraponham às próprias personagens. É evidente que o lado visual do filme é muito importante, tanto mais importante quanto, durante a maior parte do tempo, os dois protagonistas são visíveis apenas dentro dos seus fatos espaciais.
                      Gravity
       Contudo, e na circunstância de resposta a uma catástrofe iminente, são os diálogos que sobretudo prendem a nossa atenção (e o argumento do filme é da co-autoria do próprio Alfonso Cuarón) por nos aproximarem das personagens e da sua situação muito difícil - e esses diálogos são muito bons. Jogando bem com a situação vivida, eles permitem-nos tomar contacto com as reacções dos protagonistas e ficar a conhecê-los em situação por assim dizer terminal.
      Apesar das suas qualidades, há neste filme um elemento que me desagrada, e que é, independentemente da sua qualidade, a insistência na música durante todo o tempo, o que nos impede de sentir com maior verdade a situação narrada e descrita, impedindo-nos literalmente de escutar "o silêncio do cosmos". Eu sei que a música, para mais com o seu volume aumentado, ajuda na criação do filme como espectáculo audiovisual, mas esta é uma daquelas situações em que eu teria preferido que o seu uso fosse mais comedido e também que ela jogasse melhor com o ambiente em que a acção decorre.
                      Gravity
        Alfonso Cuarón é um cineasta com provas dadas, mesmo na ficção científica ("Os Filhos do Homem"/"Children of Men", 2006), e com uma obra relevante, que inclui um filme da saga Harry Potter ("Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban"/"Harry Potter and the Prisoner of Azkaban", 2004), atrás de si, que depois dos seus inícios no seu país tem trabalhado com um sucesso assinalável em Hollywood. Falta-lhe, a meu ver, em "Gravidade" a noção do espaço cósmico, que se torna apenas visual e ritmado pela música de tal modo que impede que se ouça o que desse espaço é para nós indissociável: o silêncio.
       Com um maior respeito por esse silêncio os próprios diálogos, repito muito bons, poderiam ter resultado melhor. Vou por isso comprar o dvd para poder rever este filme sem a música - o 3D, embora bem utilizado não me parece ser neste caso essencial. O momento central do filme, a aparição do "fantasma" de Matt a Ryan Stone, quando os podemos ver aos dois sem o capacete protector do facto espacial e ele lhe transmite as instruções necessárias a um regresso bem sucedido, eminentemente visual e dialogado, talvez possa, tal como o regresso dela à gravidade terrestre, ser assim melhor apreciado.

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