“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Bruscamente

    Um dos mais conceituados e melhores cineastas americanos da actualidade, Paul Thomas Anderson, volta a surpreender com "Vício Intrínseco"/"Inherent Vice" (2012), baseado no romance homónimo de Thomas Pynchon (edição portuguesa: Bertrand Editora, Lisboa, 2010), um dos maiores modernos da literatura americana. E com base em tão delicioso e delicado material literário só um grande filme, como este bruscamente surgido é, podia fazer sentido.
                      Phoenix alongside Katherine Waterson in the film (2014 Warner Bros)
    P. T. Anderson volta a mostrar todo o seu talento cinematogáfico ao chamar de novo a si, além da realização, também a produção e a autoria do argumento, o que, dadas as circunstâncias, se impunha e resulta admiravelmente na preservação de diálogos alucinantes, também alucinados, que dão conta da evolução de uma situação com traços de filme policial em que nem tudo - como em "À Beira do Abismo"/"The Big Sleep", de Howard Hawks (1946) baseado em Raymond Chandler acontecia - se torna imediatamente compreensível, sobretudo para quem não conhecer o romance original.
    Mas os diálogos equívocos, material concreto mesmo se tornado quase abstracto, implicam os actores, todos eles excelentes, com destaque para Joaquin Phoenix como Doc Sportello, Katherine Waterston como Shasta Fay Hepworth, Josh Brolin como Bigfoot, Joanna Newsom como Sortilège (cuja voz faz a narrativa off) e Benicio Del Toro como Sauncho Smilax - a interpretação do primeiro, moldada sobre Neil Young, é uma performance notável de brio nas nuances do rosto, do corpo e do gesto, o que todos os outros acompanham muito bem. E isto torna-se tanto mais importante quanto excertos inteiros do filme, sobretudo no início, são compostos por diálogos cerrados, com uma ou duas personagens no mesmo plano.
                      inherent_vice_1
    Dito isto, não está ainda dito o mais importante, que é o filme conseguir atingir plenamente o registo entre a comédia e o drama em que a primeira prevalece sem anular o segundo, antes com a sua exponenciação de uma forma simultaneamente risível e crítica, o que está presente tanto nos frequentes diálogos como nos escassos momentos de acção. Daqui resulta uma obra surpreendente que provoca o riso e anula as lágrimas pela permenente afirmação de um limite de razoável indefinição, no que capta plenamente o romance de Pynchon. E é excepcional a longa cena erótica entre Doc e Shasta, que desencadeara o enredo, próximo do final do filme.
    Como grande cineasta que é, Paul Thomas Anderson imprime um ritmo próprio a este "Vício Intrínseco" que não tem nada que ver com o frenesim do cinema americano maioritário, detendo-se no diálogo aparentemente anódino por onde faz passar toda a informação vital, mesmo se em prejuízo da imagem, e tratando com à-vontade os momentos de maior tensão, mantendo sempre a câmara à distância justa, mesmo quando ela é, como frequentemente sucede, muito próxima. 
                     Inherent Vice Katherine Waterston 
   Num muito conseguido filme de época sobre os muito animados anos 70 americanos - da guerra do Vietnam, da administração Nixon, da "revolução hippie", da contra-cultura e da "teoria da conspiração" -, a sua outra referência de época possível seria "O Imenso Adeus"/"The Long Goodbye", de Robert Altman (1973), baseado também ele em Raymond Chandler, mas Anderson vai muito mais longe em puro génio cinematográfico do que o seu antecessor, salvo ocasionalmente, alguma vez foi (sobre Robert Altman ver "Dois modernos americanos", de 15 de Dezembro de 2012). 
    Com uma tranquila obstinação criativa, Paul Thomas Anderson vai acrescentando a sua obra, filme a filme, com novas peças admiráveis, em que a justeza do tom - aqui ao nível de "Jogos de Prazer"/"Boogie Nights" (1997) mas mais dominada - e a pertinência da forma se aliam da melhor maneira, como neste excepcional "Vício Intrínseco" mais uma vez superlativamente sucede. E são esses elementos que, conjugando-se a partir de um excelente romance de um grande (e incógnito) escritor, tornam este filme, com notável fotografia de Robert Elsvit e uma música fantástica de Jonny Greenwood, uma experiência cinematográfica extraordinária, a que se assiste com gosto e interesse genuínos (sobre o cineasta ver "Paul Thomas Anderson: O Enigma", de 20 de Janeiro de 2012, "Mosaico vivo", de 30 de Março de 2012, e "Sem saída", de 12 de Fevereiro de 2013.)

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