“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Pedra de toque

    Posso dizer do francês Bruno Dumont que é um cineasta que respeito, que até agora admirava sem amar os seus filmes (para usar uma distinção de João Bénard da Costa). Sério e intransigente, os seus filmes traziam contudo, cada um deles, um peso, uma gravidade excessiva que nos impressionava até nos esmagar. Influenciado nomeadamente por Robert Bresson, ainda não tinha atingido a dosagem ideal no cinema, aquele ponto a partir do qual ficamos interditos.  
                     
     É por isso mesmo que "O Pequeno Quinquin"/"P'tit Quinquin" (2014) é uma verdadeira surpresa com a sua mudança para um registo de comédia muito conseguido, que em nada prejudica, antes beneficia e ilumina a gravidade anterior. Tinha visto a série no Arte nos últimos meses do ano passado e não tinha ficado convencido. Mas, com a estreia do filme completo em sala esta semana em Portugal, pude agora vê-lo nas melhores condições todo de seguida e fiquei convencido.
      A partir de novo de uma argumento seu, Bruno Dumont consegue atingir o justo equilíbrio entre a comédia, a caricatura mesmo - o Comandante Van der Weyden/Bernard Pruvost e o Tenente Carpentier/Philippe Jore -, e a gravidade da situação envolvida dos crimes em série numa pequena aldeia do noroeste de França, que eles investigam. À parelha de polícias responde o par de miúdos, o P'tit Quinquin/Alane Delhaye e Eve Terrier/Lucy Caron, e o bando dele.
                     
    Há crime na aldeia e o responsável é o Diabo, provavelmente. Nada acidental nas suas referências, o cineasta mostra toda a sua dimensão como criador ao manter a sua câmara à distância justa para que as personagens surjam e evoluam à medida do insólito dos acontecimentos que investigam, por forma a que, sem embargo do dramatismo, o cómico grotesco das próprias personagens responda ao brutal grotesco dos crimes.
       Ora é justamente ao não poupar detalhes e reflexões - ao não subtrair - que o filme explana e espraia com humor uma situação grave reduzida ao ridículo para melhor a fazer reverberar no seu carácter sintomátco - e tudo isso resulta muito melhor no grande ecrã do cinema. Lembra Jacques Tati, lembra Robert Bresson, François Truffaut também, mas "O Pequeno Quinquin" é sobretudo Bruno Dumont a traçar o seu próprio caminho com inteira liberdade, a exprimir-se cinematograficamente sem peias - a inesquecível missa de finados, os sonhos realizados dos dois polícias (conduzir um carro sobre duas rodas, montar um cavalo, embora trocando-lhe o sexo), Van der Weyden que finalmente se lembra do nome do pintor flamengo em que o cadáver nu de uma mulher e o cavalo o fazem pensar - num filme que é um mosaico em que todos os diálogos são e não são de levar à letra e cada personagem deve ser vista em toda a diversidade que em si mesma relacionalmente encerra. 
                      Julien Bodard, Corentin Carpentier e Alane Delhaye em cena de P'tit Quinquin, de Bruno Dumont
     Os actores voltam a ser não-profissionais, o que, revelando-se eles grandes actores, funciona plenamente, e é também por isso que o filme foi recebido em França como uma "bomba", como escreveu Stéphane Delorme nos Cahiers du Cinéma, que o consideraram o melhor filme de 2014. Que em "O Pequeno Quinquin" a questão seja a mesma que nos filmes anteriores de Dumont duvido muito, já que a forma, a estética e o estilo, apesar do final e por causa dele, alteram toda a situação, pois este não é um filme que se suporta por ser muito bom mas que se desfruta pelo seu equilíbrio figurativo (não lhe vou chamar narrativo) e formal.
      Não me lembro, de facto, de filme tão bem equilibrado visual, geometricamente, como este na obra do cineasta, um equilíbrio que joga com os excessos e distorções que mostra e que decorre na sua esmagadora maioria em exteriores. Rara, a música diegética e sobretudo não diegética introduz o comentário preciso, mesmo se grave. Naquela pequena aldeia imaginária, naquelas personagens trabalhadas em pormenor, todos suspeitos e vítimas potenciais, está toda a França e estamos todos nós. Sem dó e sem piedade, mas também sem nenhuma facilidade, diferenças raciais, de condição e etárias incluídas (sobre Bruno Dumont ver "A dignidade do cinema", de 30 de Julho de 2012, e "Filme de programa", de 30 de Junho de 2013).    

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