“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Um belo trabalho

     Só agora estreou em Portugal o penúltimo filme de Ken Loach, "O Espírito de '45"/"The Spirit of '45" (2013), um documentário notável que era preciso alguém fizesse. Porque tinha essa obrigação, fê-lo ele e fica-lhe bem. 
                    
  O cineasta constrói o seu filme sobre imagens de época e comentários de sobreviventes e de outros mais recentes, com traços actuais muito vivos nos depoimentos agora recolhidos dos que viveram o imediato pós-guerra em Inglaterra. O propósito é simples, evidente mesmo, mas está muito bem trabalhado: mostrar o espírito que, no pós-guerra, levou à nacionalização de sectores estratégicos da indústria e dos serviços, e à criação do NHS/SNS em Inglaterra, confrontando-o com as privatizações a que procedeu o governo conservador de Margaret Thatcher nos anos 80.
   O grande mérito de Ken Loach é o de manter ao longo de todo o filme o ponto de vista operário e trabalhista, sem qualquer transigência, como lhe competia. Ceder a palavra ao lado contrário, conservador, seria adoptar uma lógica de reportagem televisiva, pelo que a sua recusa se compreende muito bem.
                     
    Num projecto com alguma coisa de militante, Ken Loach mostra desembaraço e inteligência na escolha das imagens a preto e branco (só o final é a cores) e dos depoimentos também a preto e branco, embora o seu "O Espírito de '45" omita o papel (se algum) do governo trabalhista Tony Blair/Gordon Brown que, passado em silêncio, fica remetido a um comprometedor interregno sobre estas questões, em benefício da confiança depositada no Miliband que se segue.
    Nestes termos, o seu filme é sobretudo um apelo lançado ao presente para o futuro, o que não deixa de ser curioso, muito pertinente mesmo numa época de crise do capitalismo global. Mas o que lhe sobra em romantismo e espírito combativo talvez lhe falte em termos realistas sobre a actualidade - muito eloquentes, as imagens documentais escolhidas são do imediato pós-guerra, não do presente, o que se percebe apenas porque ao operariado inicial em parte sucedeu a classe média, agora em crise.  
                      Spirit of '45 2
     A "O Espírito de '45" reconheço o mérito evidente de mostrar as condições de Inglaterra no pós-guerra, o que é muito importante, mas também o de esclarecer com meridiana clareza que, por muito boas que elas sejam, não há soluções sociais ou políticas "para sempre", pelo que cada geração tem que as discutir e decidir por si própria, para o seu próprio tempo e para o futuro próximo. Qualquer que seja a nossa posição, nada é eterno, tudo tem de ser renovadamente escolhido, decidido ao longo do tempo. Quanto ao NHS/SNS, se o capitalismo neo-liberal tivesse ética ele seria uma questão de ética do capitalismo. Ao cinema fica bem mostrá-lo intransigentemente, tomando posição clara sobre a necessidade de renovar "o espírito de 45" - avançou-se muito, mas quanto caminho falta ainda, hoje e sempre (sobre o cineasta ver "Boa colheita", de 29 de Agosto de 2014).    

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