“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Só e inocente

     Passou no final da semana passada no Arte o tele-filme "Survivre à Guantanamo"/"5 Jahre Leben", de Stefan Schaller (2013). Baseado no relato do próprio protagonista, Murat Kurnaz/Sascha Alexander Gersak, é um filme surpreendente e inquietante sobre aquela conhecida e indesejável prisão americana, centrado num prisioneiro como outros submetido a sucessivos interrogatórios e sucessivas torturas.
                    Survivre à Guantanamo - 1
     Sem dar excessivo relevo à reconstituição das torturas físicas e psicológicas - a tortura mais cruel e violenta, decorrida no Afganistão, é descrita em palavras suas por Murat -, mas não a omitindo, este filme centra-se no diálogo ácido do inquiridor Gail Holford/Ben Miles com o detido, no sentido de arrancar dele a confissão dos factos e dos contactos de que ele é acusado. Apesar de toda a astúcia do oficial americano, Murat Kurnaz, um turco nascido na Alemanha, nada confessa e nega tudo sempre - e a diferença cultural entre ambos está sempre muito presente não apenas nas posições relativas mas nos próprios diálogos.
    Com alguns excertos do passado do protagonista reconstituídos também, temos acesso a alguns lugares-comuns numa comunidade como a sua era na Alemanha, que funcionam plenamente para estabelecer a sua identidade. Mas de cabeça baixa, acossado ou desafiador, ele persiste na sua recusa de confessar seja o que for. 
                   
   Habituados como estamos a que casos semelhantes acabem com a condenação dos acusados, somos até certo ponto surpreendidos com a informação dada no final de que Murat Kurnaz foi libertado e regressou à Alemanha, tendo-lhe sido apresentadas descupas públicas pelas autoridades americanas. Considerando-o retrospectivamente, compreendemos todo o absurdo que o filme envolve e toda a falta de sentido da tortura, utilizada com um inocente.
    Assim, neste processo com traços kafkianos, muito bem filmado e interpretado, de que a realização tira o melhor proveito em favor do dispositivo concentracionário, somos postos em contacto com uma justiça de guerra americana que faz tudo para provar o que quer e acaba por admitir não poder provar nada contra o acusado. "Survivre à Guantanamo" é um tele-filme essencial e exemplar, porque sendo por um inocente, cujo ponto de vista nos dá, é também contra a tortura e contra o próprio conceito de Guantanamo. Repete na noite de 17 para 18 de Fevereiro no Arte, um canal cultural de enorme qualidade e programação intransigente, o que aqui volto a assinalar.

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