O documentário "Citizenfour", de Laura Poitras (2014), o terceiro filme de um tríptico sobre a América precedido de "My Country, My Country" (2006) e "The Oath" (2010), que não estrearam em Portugal, é um filme muito bom, permanentemente controlado, que acompanha e entrevista o conhecido Edward Snowden no seu refúgio em Hong-Kong, de onde deu conta ao mundo daquilo de que, como antigo especialista em informações confidenciais dos serviços secretos dos Estados Unidos, teve conhecimento.
Neste extraordinário mundo novo em que todos, mas absolutamente todos vivemos por causa da internet e das comunicações globais, sobre ele ficamos todos a saber que fomos e somos todos, mas absolutamente todos, vigiados nos nossos menores movimentos, com fundamento num famigerado "Patriot Act" da administração George W. Bush que a administração Barack Obama manteve. A pretexto da defesa dos americanos contra o terrorismo, um terror suscitado pelos ataques de 11 de Setembro de 2001, toda uma maquinação securitária foi montada e mantida em termos tais que, atentando contra as mais elementares regras democráticas, todos somos sujeitos a vigilância.
Tal como apresentadas por ele próprio, as acções de Edward Snowden são motivadas por legítimas boas intenções, que o tornam uma espécie de herói destes novos tempos, contra aquilo que o seu próprio governo defende e pratica, o que torna este "Citizenfour" no mais inesperado filme de espionagem (ainda para mais um documentário) em que nenhum escritor, de Ian Fleming a John le Carré, pensou - a fuga do protagonista de Hong-Kong está filmada e é sugerida como um verdadeiro filme de espionagem.
E com a nossa simpatia por Snowden que, com apoio nele no próprio, a cineasta muito bem suscita, vai também a nossa indignação contra uma situação arbitrária e indiscriminada que nada tem já a ver com o estado, o direito ou os direitos individuais. Eu estava informado sobre esta situação, como todos podíamos estar, através dos canais de televisão que vejo - e quer a imprensa quer a televisão foram fundamentais nas revelações públcas de Edward Snowden -, mas o filme de Laura Poitras, justamente galardoado com o Oscar do melhor documentário de 2014, revê toda esta questão colocando-a em perspectiva.
Não nos podemos alhear da realidade que este filme fielmente retrata a nível mundial, nem devemos minimizar a ameaça que o que descreve significa para todos nós. A questão colocada por escrito no final entre Edward Snowden e o seu inteiramente pertinente interlocutor Glenn Greenwald é que ou somos vigiados ou colaboramos na vigilância, o que é duma contundência estarrecedora, que convoca mesmo os piores fantasmas totalitários do Século XX.
Esta uma questão absolutamente divisória que pode determinar o nosso futuro e a escolha do próximo Presidente dos Estados Unidos da América. E, nestas condições, o cinema marca em "Citizenfour", de Laura Poitras e com Steven Soderbergh como produtor executivo, um espaço específico de reflexão, à altura da sua tradição como arte de massas que não é indiferente ao presente. Os clássicos e modernos têm, no documentário como na ficção, o seu venerável lugar, mas o cinema contemporâneo passa por aqui.
Com um uso inevitável e completo das vozes das personagens, ocasionalmente da sua própria voz, a realizadora constrói o seu filme sobre espaços fechados (o quarto de hotel), que se assemelham a espaços carcerais, o que como dispositivo-base permite as saídas do interlocutor mas, comprimido, dá todo o corte do mundo a que o protagonista foi submetido e a partir do qual falou para todos nós.
Com um uso inevitável e completo das vozes das personagens, ocasionalmente da sua própria voz, a realizadora constrói o seu filme sobre espaços fechados (o quarto de hotel), que se assemelham a espaços carcerais, o que como dispositivo-base permite as saídas do interlocutor mas, comprimido, dá todo o corte do mundo a que o protagonista foi submetido e a partir do qual falou para todos nós.
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