“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 31 de março de 2015

Actualidade escaldante

    O documentário "Citizenfour", de Laura Poitras (2014), o terceiro filme de um tríptico sobre a América precedido de "My Country, My Country" (2006) e "The Oath" (2010), que não estrearam em Portugal, é um filme muito bom, permanentemente controlado, que acompanha e entrevista o conhecido Edward Snowden no seu refúgio em Hong-Kong, de onde deu conta ao mundo daquilo de que, como antigo especialista em informações confidenciais dos serviços secretos dos Estados Unidos, teve conhecimento.
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   Neste extraordinário mundo novo em que todos, mas absolutamente todos vivemos por causa da internet e das comunicações globais, sobre ele ficamos todos a saber que fomos e somos todos, mas absolutamente todos, vigiados nos nossos menores movimentos, com fundamento num famigerado "Patriot Act" da administração George W. Bush que a administração Barack Obama manteve. A pretexto da defesa dos americanos contra o terrorismo, um terror suscitado pelos ataques de 11 de Setembro de 2001, toda uma maquinação securitária foi montada e mantida em termos tais que, atentando contra as mais elementares regras democráticas, todos somos sujeitos a vigilância.
  Tal como apresentadas por ele próprio, as acções de Edward Snowden são motivadas por legítimas boas intenções, que o tornam uma espécie de herói destes novos tempos, contra aquilo que o seu próprio governo defende e pratica, o que torna este "Citizenfour" no mais inesperado filme de espionagem (ainda para mais um documentário) em que nenhum escritor, de Ian Fleming a John le Carré, pensou - a fuga do protagonista de Hong-Kong está filmada e é sugerida como um verdadeiro filme de espionagem. 
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    E com a nossa simpatia por Snowden que, com apoio nele no próprio, a cineasta muito bem suscita, vai também a nossa indignação contra uma situação arbitrária e indiscriminada que nada tem já a ver com o estado, o direito ou os direitos individuais. Eu estava informado sobre esta situação, como todos podíamos estar, através dos canais de televisão que vejo - e quer a imprensa quer a televisão foram fundamentais nas revelações públcas de Edward Snowden -, mas o filme de Laura Poitras, justamente galardoado com o Oscar do melhor documentário de 2014, revê toda esta questão colocando-a em perspectiva.
   Não nos podemos alhear da realidade que este filme fielmente retrata a nível mundial, nem devemos minimizar a ameaça que o que descreve significa para todos nós. A questão colocada por escrito no final entre Edward Snowden e o seu inteiramente pertinente interlocutor Glenn Greenwald é que ou somos vigiados ou colaboramos na vigilância, o que é duma contundência estarrecedora, que convoca mesmo os piores fantasmas totalitários do Século XX
                     
    Esta uma questão absolutamente divisória que pode determinar o nosso futuro e a escolha do próximo Presidente dos Estados Unidos da América. E, nestas condições, o cinema marca em "Citizenfour", de Laura Poitras e com Steven Soderbergh como produtor executivo, um espaço específico de reflexão, à altura da sua tradição como arte de massas que não é indiferente ao presente. Os clássicos e modernos têm, no documentário como na ficção, o seu venerável lugar, mas o cinema contemporâneo passa por aqui.
    Com um uso inevitável e completo das vozes das personagens, ocasionalmente da sua própria voz, a realizadora constrói o seu filme sobre espaços fechados (o quarto de hotel), que se assemelham a espaços carcerais, o que como dispositivo-base permite as saídas do interlocutor mas, comprimido, dá todo o corte do mundo a que o protagonista foi submetido e a partir do qual falou para todos nós.

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