Contra o costume, acordei na passada segunda-feira, 23 de Março, antes das 3 horas da manhã e estive a trabalhar até às 5. De manhã cortei o cabelo, fui buscar uns filmes à biblioteca da escola onde ensino e preenchi uma pauta. De tarde dei cinco horas de aulas, jantei e deitei-me cedo, e dormi muitas horas seguidas. No dia seguinte, terça-feira 24 de Março, dei uma aula de manhã, almocei e fui depois a uma livraria onde esperava encontrar um livro que procurava. Não o encontrei e na segunda livraria em que entrei soube da notícia. Era esperada mas chocou-me. Muito.
Desci uma calçada íngreme não pelo passeio mas pelo próprio empedrado da calçada, porque era o caminho mais curto para encontrar uma esplanada em que me sentar. Aí encontrei uma antiga aluna com quem nunca tinha tido antes uma conversa longa, e estive a conversar com ela durante uma hora. Quando desci a rua para o local onde tinha a aula seguinte percebi que tinha torcido o pé direito a descer a anterior calçada. Andei um bocado para desfazer a dor e dei a aula, finda a qual subi a rua até à mesma esplanada, onde jantei ao ar livre. O vento era forte, muito forte e frio, e levava tudo pelos ares. Não me deu tréguas, que era precisamente o que eu queria para poder sentir tudo. Nessa noite adormeci de novo cedo e voltei a dormir muitas horas seguidas.
Na quarta-feira, 25 de Março, despachei de manhã os assuntos que tinha de tratar, entre eles uma reunião, almocei cedo e na estação comprei o jornal. Na viagem, nos lugares à frente do meu uma mãe adormeceu com a cabeça no regaço da filha pequena e do outro lado do corredor um casal de turistas tinha diante de si um volumoso guia turístico de Portugal. Acabei de ler o jornal quando cheguei a casa, depois de ter passado por uma livraria e um mercado do livro em que não havia rasto da noticia do dia anterior. O vento continuava a soprar, fortíssimo e frio, cortante, e parecia ir rebentar com as janelas
Aqui sentado, a escrever isto, lembro-me do meu pai, que tinha 22 anos e vivia em Lisboa quando Fernando Pessoa morreu. Nunca cheguei a falar muito com ele sobre a vida e a morte do poeta múltiplo, e o seu conhecimento pessoal dele, nem sequer quando, nos seus últimos anos de vida, ele falava da "cor da camisa de Fernado Pessoa", que estupidamente nunca lhe cheguei a perguntar que cor era.
O meu pai era um pessoano conhecedor e esclarecido, como eu sou, mas eu sou também um herbertiano apaixonado (a única maneira de o ser) de longa data, a quem aconteceu ser vivo na data da sua morte. Tenho, por isso, a noção de ter vivido dias que mudaram o mundo, quando o maior poeta português vivo passou a ser o maior poeta português morto. Lembro-me também de um velho amigo meu que, mais novo do que eu, já morreu, e conhecia e apreciava pelo seu justo valor o Herberto Helder. Obscuro sempre.
Soube pelo mesmo jornal que tinha caído na véspera um avião de uma companhia low cost e morrido 150 pessoas. Nesta noite de quarta-feira em que escrevo o vento já tinha amainado.
Herberto Helder deixou, como Pessoa, caixotes, baús de papéis, mas de papéis em branco, para que outro, outros continuem o seu poema contínuo de outra, a sua própria maneira, mesmo que já nada tenha a ver com a dele. Vou continuar a ler a sua escrita luminosa, compulsiva e lúcida, em que descobre, reinventa uma língua, o português, se desvanda e descobre o nosso mundo, as mulheres sempre, a nossa vida e a nossa morte.
Em nome da família enlutada mas muito orgulhosa, aceito e retribuo os vossos sentidos pêsames (sobre Herberto Helder ver "Pessoa e o cinema", de 21 de Outubro de 2012, e "Pontifex Maximus", de 30 de Maio de 2013).
"(...)
a ideia, a idade,
a fala:
a mais rouca ou mais leve ou de azougue -
poema que desconheço, o antigo, o novíssimo,
o que devora
a mão que o escreve: no papel fica apenas
sal de ouro,
e vê-se tão bem como o rosto se eleva
da sua condição de cometa escarpado caído
raso,
e depois erguido defronte das câmaras,
por entre as pranchas de mármores das florestas da terra,
limpo, lento
- um toque secreto na têmpora,
o tremor da música na boca,
porque é o primeiro e o último baptismo:
o poema escreve o poeta nos recessos mais baixos,
às vezes o nome enche-se de água quebrada no gargalo da bilha,
às vezes é um nome esvaziado de água:
a sangue grosso,
a árduo sopro,
quando o rosto inquilino da luz já não se filma."
(final de "Do Mundo", Assírio & Alvim, 1994)
"(...)
a ideia, a idade,
a fala:
a mais rouca ou mais leve ou de azougue -
poema que desconheço, o antigo, o novíssimo,
o que devora
a mão que o escreve: no papel fica apenas
sal de ouro,
e vê-se tão bem como o rosto se eleva
da sua condição de cometa escarpado caído
raso,
e depois erguido defronte das câmaras,
por entre as pranchas de mármores das florestas da terra,
limpo, lento
- um toque secreto na têmpora,
o tremor da música na boca,
porque é o primeiro e o último baptismo:
o poema escreve o poeta nos recessos mais baixos,
às vezes o nome enche-se de água quebrada no gargalo da bilha,
às vezes é um nome esvaziado de água:
a sangue grosso,
a árduo sopro,
quando o rosto inquilino da luz já não se filma."
(final de "Do Mundo", Assírio & Alvim, 1994)
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