“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 23 de julho de 2012

As cativas


      A quinta longa-metragem de Bertrand Bonello, “Apollonide - Memórias de um Bordel”/”L’Apollonide (Souvenirs de la maison close)” (2011), vai à procura da "mais antiga profissão do mundo" em Paris da Belle Époque, assumindo as influências para tanto pertinentes da história do cinema – Max Ophuls, Luis Buñuel – para se situar do lado delas, para o que o realizador assume um ponto de vista exterior mas participante.
            O que nos tempos que correm poderia passar por uma exploração grosseira coloca a questão em imagens e palavras justas e certeiras, sem julgar ninguém mas mostrando como foi, como era quando as "casas" eram fechadas a partir de um momento, mostrado no plano final, em que deixaram de haver portas fechadas, tudo se passa em qualquer lugar. Mas o realizador também recusa o porno-chique que o tema poderia propiciar, em benefício de um rigoroso retrato de época sem complacências, mostrando o que dói onde lhes dói a elas, como o encaram também com naturalidade, como o pagam na carne. A personagem inicial de Madeleine/Alice Barnole vai servir de fio condutor de uma narrativa que o não quer ser, para ilustrar o limite a que cada uma das outras está também sujeita, e o regresso recorrente da sua história está muito bem visto, para que o momento fatal surja só no fim – depois as lágrimas do sonho dela, Buñuel de passagem, além da caixinha fechada, mais “Bela de Dia”/”Belle de Jour” (1967) do que “Un Chien Andalou” (1929) em todo o caso.
                      http://imagem.band.com.br/f_73434.jpg 
              De resto o filme é o ambiente fechado habitado por mulheres jovens mais a patroa, de que só saímos passada uma hora para a paisagem campestre – “O Prazer”/“Le Plaisir”, de Max Ophuls sobre Guy de Maupassant (1952) – para aí regressarmos depois, com a câmara sempre no lugar certo para que tudo decorra com a maior evidência e simplicidade, com candura mas sem especulação, captando a sensualidade física envolvente, os corpos vestidos e despidos, imóveis e em movimento, os momentos de convívio em baixo, os de acção em cima (dados em elipse), os momentos de repouso. A vida é dura para todas, cada uma a encara à sua maneira sem prejuízo de uma proximidade e cumplicidade compreensíveis, mas todas ambicionam pagar o que devem para saírem dali. Nem os homens, que frequentavam o bordel para o que em casa ou noutro lado lhes era negado, ou então pelo convívio ou por mera boémia, são hostilizados, pobres criaturas eles como elas, todos humanos. Embora talvez demasiado contido, o filme assume com muita pertinência a influência da pintura impressionista da segunda metade do século XIX e a de Jean Renoir, nomeadamente do lado plástico e pictórico, mas também na definição física das personagens, e consegue atingir com brio o seu ponto de equilíbrio próprio. A normalidade da vida comum apenas vai ser interrompida pela chegada da nova, pela visita do médico, uma inspecção sanitária que vai trazer àquele meio o elemento antropológico de época, e depois pela ameaça de fecho da "casa", que pesa sobre a parte final. Deste modo, até a tentação do melodrama é muito bem evitada, para o que é decisiva a secura e sensibilidade do registo contido que, contudo, cria e respeita um tom de nostalgia romântica pelo fim de uma época memorável, que o filme muito bem reconstitui e preserva. Os interiores são muito bem explorados como espaços (os dois pisos), na luz e nas cores (com especial destaque para o negro) que conferem um lado pictórico às imagens, os movimentos de câmara e a montagem imprimem ao filme uma suavidade que se ajusta ao ambiente e às suas habitantes, o split screen é muito bem usado, sempre sem quebrar a ideia de clausura e sem procurar qualquer tipo de exploração, funcionando antes como resumos ou abreviações. 
                       http://www.leparisien.fr/images/2011/09/21/1618518_apollonide-dr.jpg
  Além de realizador e co-produtor, autor também do argumento e da música, que inclui escolhas modernas, Bertrand Bonello apresenta-se aqui como um cineasta com grandes qualidades – não conheço os seus filmes anteriores, que não estrearam em Portugal. Estamos, em “Apollonide -  Memórias de um Bordel”, na viragem do século XIX para o século XX, numa época em que a modernidade, que também foi marcada por esta realidade em casos bem conhecidos, já em transição se expande e exprime no seu melhor. Aliás, as prostitutas aqui tratadas são mulheres como as outras, com problemas semelhantes aos das outras e problemas específicos, embora seja bom não romantizar – o que este filme justamente não faz -, de que o cinema tem tratado como personagens em casos superiores, de Josef von Sternberg a John Ford e Fritz Lang, de Kenji Mizoguchi (“A Rua da Vergonha”/”Akasen Chitai”, 1956) a Vincente Minnelli e Billy Wilder, de Jean-Luc Godard a Rainer Werner Fassbinder, de Chantal Akerman a Jean Eustache (indispensáveis, pois libertos do romantismo anterior), de Arturo Ripstein a Pedro Almodôvar e sobretudo Hou Hsiao-Hsien (“Flowers of Shangai”, 1998), além dos já referidos.  
       Sendo sobre prostitutas e prostituição, “Apollonide” conta com actrizes e actores profissionais e não-profissionais notáveis, entre os quais os cineastas Noémie Lvovsky, Xavier Beauvois e Jacques Nolot, e é um filme todo ele construído como uma homenagem ao feminino, à mulher, esse eterno estranho e desconhecido fascinante objecto de desejo para os homens. E a construção do mistério feminino a partir de uma época muito precisa e de documentação sobre ela (por exemplo, as cartas no seu decurso lidas são verdadeiras, o que também acontece com o livro de que são lidos excertos), um mistério que a “mulher que ri” esclarece e comenta, é o maior trunfo do filme, que simultaneamente o distingue e o impõe – um mistério que em parte é fantasma masculino (a boneca, a gueixa) e que a mulher também explora e constrói, o que é precisamente o assunto que o filme muito bem trata e encena, sem escamotear os fantasmas femininos.                    
                       l apollonide souvenirs de la maison close 6 Lapollonide   souvenirs de la maison close film (Bande Annonce)
             Inequivocamente exploradas, e exploradas em termos de classe, em termos monetários e em termos de liberdade, o que o filme em vez de disfarçar evidencia desde o início no próprio fechamento permanente do seu espaço físico - a casa como habitáculo e dispositivo -, elas recomeçam cada dia para continuarem sempre, iguais a si mesmas, fiéis a si próprias, sabendo como sabem que estão a viver o fim de um tempo, sem saberem, porém, que para elas esse tempo não terá fim e virá a passar por condições muito mais severas - o muito justo plano final.

1 comentário:

  1. Me chamo Tatiana e trabalho em uma agência de Marketing na Espanha. Gostaria de te convidar a participar de uma campanha de publicidade de um dos nossos cliente em Portugal.
    O seu blog tem o perfil deste trabalho e adoraria poder contar contigo. Caso queria saber as informações basta me enviar um email. Alerto queisso não se trata de um SPAM: tamin@ibooster.es

    Beijos e ótima tarde
    Taty

    ResponderEliminar