“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Postal de Marselha

          Robert Guédiguian é um dos mais consensuais cineastas franceses da actualidade, com um percurso muito regular e filmes interessantes. O seu filme mais recente, "As Neves de Kilimanjaro"/"Les neiges du Kilimandjaro" (2011), vem, contudo, esclarecer aquilo de que se suspeitava anteriormente: Guédiguian é também, talvez desde o início, um cineasta morno, que faz filmes moralistas e bem intencionados, o que com o correr do tempo se torna cada vez mais notório.
        Neste seu último filme, com subtileza e inteligência, numa espécie de "back to the basics" ele coloca-nos perante um sindicalista instalado até ao fim na sua boa consciência que é levado a questionar-se a si próprio perante a atitude contra si empreendida por um companheiro de trabalho muito mais novo, o que leva a que ele e a mulher tomem contacto com realidades que de outro modo não conheceriam. Inspira-se para tal no poema "Les Pauvres Gens", de Victor Hugo, o que se compreende e lhe fica bem. Assim, onde se poderia esperar um questionamento da situação actual e dos seus causadores, deparamo-nos com um filme tranquilo de regresso à realidade e às origens de um pensamento em favor da solidariedade entre os mais desfavorecidos.
                               
         Nascido em Marselha e de origem arménia do lado paterno, Robert Guédiguian é um cineasta em que se sente o gosto de filmar a sua cidade e que criou ao longo dos anos a sua equipa, nomeadamente a sua troupe de actores - Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan -, com os quais continua a trabalhar de filme para filme, o que dá um ar de família e uma especial coerência aos seus filmes. Neste filme, porém, a sua complacência chega ao ponto de fazer planos que são "bilhetes postais" da cidade, o que obviamente o finlandês Aki Kaurismali não fez em "Le Havre" (2011), para o qual, no entanto, foi buscar Darroussin. Pode sempre argumentar-se que é a terra dele, mas mesmo assim, e até por isso, acho que ele aqui abusa.
         De facto, há que dizer que ele é um cineasta com um estilo demasiado conformista e complacente de filmar, sempre muito apoiado naqueles com quem trabalha e naquilo que filma, que não arrisca nem temática nem formalmente, demasiado defensivo e preocupado com a boa impressão que os seus filmes devem causar - conformista nos limites do academismo. Bem dada, uma ideia de regresso às origens passa, contudo, como o melhor do filme, o que só por si é importante e pode permitir mesmo considerar o aparente academismo formal de Guédiguian como um esboço de classicismo.
                   F213 AS NEVES DO KILIMANJARO 
           O cineasta já se tinha socorrido da tentativa de remake camuflado, com variações, em "O Exército do Crime"/"L'armée du Crime" (2009), a partir de ideia original de Serge Le Péron, um filme apesar de tudo estimulante em que mostra vitalidade e investimento afectivo, que se insere num projecto de recuperação do melhor do passado do cinema francês que atingiu também, e de forma mais clara, Alain Corneau (1943-2010) naquele que veio a ser o seu penúltimo filme, o que só demonstra a falta de ideias actuais sobre o presente e sobre o cinema, perante o que se procura o conforto de certezas passadas. Ingénuo e ainda limitado, esse é um filme limpo que anima e esclarece o seu cinema, lhe imprime as rugas que lhe faltavam e lhe ficam bem.       
        "As Neves de Kilimanjaro" é um filme simpático, sem rasgo nem riscos, que não tem novidade nem frescura, em que o cineasta continua a olhar para o umbigo em Marselha, instalado na reputação adquirida, sem ideias nem desejo de cinema. Bem intencionado, lúcido e moralista é o melhor que se pode dizer dele, o que não sendo mau nos dias que correm é manifestamente escasso - não conheço "Le voyage en Arménie" (2006) e "Lady Jane" (2008), que podem ser importantes para compreender a sua obra  mas não estrearam em Portugal. Talvez este seja o tipo de humanismo que transformará Robert Guédiguian num novo clássico do cinema, o que até lhe ficará bem. Agora é preciso merecê-lo. Não deixar que os amigos o canonizem em vida. Menos auto-indulgência e alguma má consciência só lhe fariam bem. 

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