“Uma
Separação”/”Jodaeiye Nader az Simin” é a quinta longa-metragem de Asghar
Farhadi, realizador, produtor e argumentista, mais um filme iraniano
muito bom - recebeu este ano o Óscar para o melhor filme estrangeiro - que vem
chamar a atenção para uma cinematografia importante que nunca se resumiu a
Abbas Kiarostami, e hoje menos do que nunca. Conhecem-se mesmo os problemas de
cineastas iranianos com o actual regime de Teerão, que levaram à prisão de
alguns deles, o que suscitou um vasto movimento internacional de indignação,
solidariedade e protesto.
O filme começa por um
argumento muito bem imaginado a partir do quotidiano de um casal em vias de
separação, Simin/Leila Hatami e Nader/Peyman Moadi, de que nos é dado mais o
ponto de vista dele, um casal dividido pela atitude face ao futuro: emigrar,
como por causa da filha, Termeh/Sarina Farhadi, pretende Simin, ou ficar, como
pretende Nader por causa do pai doente e de idade avançada. A situação torna-se
melindrosa e equívoca quando a empregada contratada para tomar conta do idoso
dependente, Razieh/Sareh Bayat, é acusada de incúria e acusa Nader de, ao
empurrá-la, a ter feito cair e perder o filho de que estava grávida.
Quando a acção do filme passa para a
audição por um inquiridor, tendente a apurar responsabilidades e tentar, por
isso, saber o que de facto aconteceu, o drama leva a que se confrontem duas
famílias, já que Hodjat/Shahab Hosseini, o marido de Razieh, resolve intervir
para pedir satisfações, sem que o espectador saiba do que aconteceu senão a
parte que lhe foi mostrada – e a reconstituição com os intervenientes do que
aconteceu, e vimos, é muito bem dada. Momento forte, decisivo, vai ser,
contudo, aquele em que
Razieh recusa jurar que as coisas se passaram como ela diz,
momento muito bem tratado em termos fílmicos, que põe à prova as crenças
religiosas arreigadas da personagem.
Ora esta trama, muito bem urdida a
nível de argumento, é muito bem encenada a nível de realização, que constrói
muito bem o filme em termos de exploração dos espaços e do trabalho dos
actores. E é mesmo a realização superior, que inscreve as personagens no espaço
para depois delas questionar o que sabemos, que transforma “Uma Separação” num
filme que excede as suas simples premissas narrativas e acaba por ser um muito
interessante questionamento sobre a verdade e a mentira, as melhores intenções
à parte. De facto, com meios escassos e em espaços limitados Asghar Farhadi
consegue apresentar as personagens e os conflitos de maneira inteiramente convincente
e sustentada em termos fílmicos, o que torna o filme num pequeno-grande achado,
perfeito em termos dramáticos e em termos formais, com uma resolução plena de
interesse, novidade e frescura, segundo a qual nem tudo o que parece é como
parece ser, porque os indivíduos são, em si mesmos, seres complexos e não os
simples desenhos convencionais que
querem aparentar ser. Por isso a verdade advém da parte da única personagem
que, em toda a sua complexidade, a podia fazer aparecer, posto o que a última
palavra do filme caberá à filha do casal em separação.
Deste modo, trabalhando sobre o cliché e contra o cliché, “Uma Separação” cumpre com um brio inesperado, invulgar, um
programa narrativo simples, com uma realização superior sem arrebiques e actores notáveis mas com um segundo grau de leitura muito importante, já que encena de modo muito feliz as diferentes concepções da vida das diferentes personagens, representativas de diferentes atitudes relevantes presentes numa sociedade fechada como é na actualidade a iraniana, o que merece especial atenção e torna este filme ainda mais interessante e recomendável. Assim se demonstra mais uma vez como o cinema pode ser, tal como a arte, a consciência de uma sociedade, a consciência do mundo e do tempo.
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