“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Mais do que experimental

         O cinema tem trabalho recentemente as suas proximidades com a pintura, quer com o aparecimento dos meios digitais, como foi o caso, notável, de "A Inglesa e o Duque"/"L'anglaise et le duc", de Eric Rohmer (2001), quer sem recurso ostensivo a eles, como aconteceu com "A Ronda da Noite"/"Nightwatching", de Peter Greenaway (2007).
         Surge agora "O Moinho e a Cruz"/"The Mill and the Cross" (2011), filme do polaco Lech Majewski que visa explicitamente recriar um quadro de Pieter Bruegel, "Subida ao Calvário"/"The Procession to Calvary" (1564), a partir de uma investigação séria de Michael Francis Gibson e com largo recurso aos cenários pintados e aos meios digitais. Para isso acompanha o pintor/Rutger Hauer durante a criação do quadro e 12 personagens deste, para o que recria a Flandres numa época, o século XVI, em que era dominada pelos espanhóis. O resultado é um filme invulgar, que permite divulgar os resultados dessa investigação de maneira séria e reconstituir a criação artística e a vida numa época de graves conflitos religiosos e políticos. Aqui reside mesmo o melhor do filme, pois não é apenas a vida na Flandres que é reconstituída, é a própria cena do Calvário que é revivida nessa época, com o invasor espanhol/católico a fazer o papel dos romanos em terra de protestantismo - a reforma protestante iniciara-se no princípio do mesmo século XVI. Assim, o mistério reconstituído da cena figurada por Pieter Bruegel torna-se, ele próprio, o mistério construído pelo filme, de que o momento mais alto é a crucificação do Filho dada do ponto de vista da Mãe/Charlotte Rampling, embora tudo o que diz respeito aos conflitos, nomeadamente religiosos, da época, e à releitura visual, plástica e pictórica, da obra pelo cinema seja muito bom.
                                  
          Este um filme que interessa em termos de história da arte e de investigação sobre ela, bem como em termos de experimentação dos meios digitais no cinema. Em termos de história da arte existe, contudo, há vários anos uma série muito interessante do canal franco-alemão Arte, "Palettes", de Alain Jaubert, que tem uma ambição muito mais vasta, a de cobrir os principais episódios da história da arte a partir do estudo aprofundado de quadros exemplares, sem o recurso à reconstituição e com o mesmo propósito de divulgação de uma investigação séria e muito bem documentada - uma série neste momento disponível em DVD -, o que aqui refiro para mostrar de novo que a televisão, no seu melhor, vai à frente do cinema.
                        Lech Majewski's The Mill and The Cross
         Cumprindo o que se propôs, "O Moinho e a Cruz" é quase insusceptível de crítica, tem o seu encanto próprio, o seu interesse certo, não se propõe ser o que não é e atinge com brio o seu propósito. De facto, por baixo da interpretação fria de um quadro, surgem-nos intactos o mistério da criação artística a partir da perspectiva do pintor e o mistério da cruz a partir de uma época posterior, dois motivos fortes que, além dos conflitos de época, justificam este filme para além do seu lado experimental. 

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