“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Perdidos


         De Kelly Reichardt, de quem conhecíamos “Old Joy” (2006) e “Wendy & Lucy” (2008), estrou entre nós “O Atalho”/”Meek’s Cutoff” (2010), que é um filme extremamente interessante e muito bom.
            Com argumento de Jonathan Raymond, situa-se nas terras perdidas do Oregon durante o século XIX e acompanha uma caravana de pioneiros perdida no deserto, entregue primeiro nas mãos de um guia de que os seus membros desconfiam, Stephen Meek/Bruce Greenwood, depois nas de um índio/Rod Rodeaux. Para tomarem decisões, os Tetherow, os Galety e os White têm que discutir entre si e uns com os outros para decidir que rumo tomar, em quem confiar.
                               
         Situado em terras desabitadas, agrestes e inóspitas, o filme explora muito bem esse mesmo espaço, em que as personagens surgem frequentemente a grande distância, numa linha predominantemente horizontal durante a primeira parte do filme, que se torna mais irregular, montanhosa e rochosa, na segunda parte. Mas Kelly Reichardt é uma cineasta de grande sabedoria, que explora a distância a que filma em planos muito gerais com grande acerto, para dar com precisão o desnorte da caravana, explora o espaço do plano e o espaço fora de campo, utiliza movimentos de câmara apropriados e elegantes e tem uma grande precisão na iluminação diurna, que dá lugar a planos de elevada composição visual e pictórica, e nocturna, em que, à luz da lareira, do candeeiro ou da lua, surpreende com noites primordiais.
            Os conflitos que se repetem, primeiro com o guia, depois com ele e com o índio, entre ele e o índio, são sempre muito bem encenados em termos fílmicos, enquanto as personagens estão caracterizadas com grande rigor nos rostos, no vestuário, nos gestos e movimentos. E são essas personagens que, ora aproximando-se, ora afastando-se, ora correndo lateralmente vão definir o quadro humano de um filme de estranha beleza, que nos prende no seu movimento mínimo desde o primeiro encontro com o índio, na captura dele, que não é mostrada, na queda pela encosta da carroça que se solta, no confronto de Emily Tetherow/Michelle Williams com o guia quando este quer matar o índio.
                        
           Sabendo sempre o que e quem filmar, e de onde filmar, Kelly Reichardt constrói o seu filme com base em pequenos apontamentos reveladores, em diálogos esclarecedores, como o que discute as diferenças entre os homens e as mulheres, e em diálogos impossíveis, como os que são tentados com o índio. Por sua vez, a presença de ruídos, como o das rodas das carroças, e da escassa mas muito bem utilizada música vem aumentar o clima de isolamento e solidão de um grupo humano à deriva mas que não deixa de se mostrar fiel às suas crenças, aos lugares civilizados de que partiu e ao destino que pretende alcançar.
            Produzido num quadro de cinema independente, “O Atalho” de Kelly Reichardt é um filme de uma enorme beleza na sua austera gestão dos meios disponíveis e de uma enorme expressividade, que além do mais reúne os quatro elementos, a terra, o ar, a água, que a caravana procura, e o fogo, o jovem Jimmy White/Tommy Nelson, os animais e a prodigiosa paisagem desértica do Oregon. Com um grupo permanentemente ameaçado de um desnorte que não consegue ultrapassar, apesar de mantidos a maior parte do tempo à distância da caravana, e por isso mesmo, somos levados a, mantendo sempre a noção do espaço, apreciar o esforço épico daqueles pioneiros na sua luta elementar com a natureza e as adversidades, pela sua própria sobrevivência.
                      
            Deixados à deriva no final, com a partida do índio, é o vazio da solidão que os acolhe, e aí somos deixados, na vasta terra desértica, num muito bem medido movimento de abandono, pessimismo e sem qualquer comentário, já que as imagens falam por si mesmas. O desespero e a solidão dados plenamente e em surdina.
           No final aberto de "O Atalho" de Kelly Reichardt ressoa o final de "Procurem Abrigo"/"Take Shelter", de Bill Nichols (2011), o que diz bem do enorme interesse destes dois novos nomes maiores do novo cinema independente americano, em cujos filmes a incerteza é um ponto comum de enorme significado (ver " A tempestade", 24 de Maio).

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