“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Uma ideia original

            
           Inspirar-se hoje em Jean Renoir (1894-1979), contudo um dos maiores, quando não o maior cineasta de todos os tempos, é uma ideia que não ocorreria a muitos, apesar de ele ter sido uma das influências maiores da “nouvelle vague” francesa. Foi, contudo, em “A Comédia e a Vida”/”Le Carrosse D’or” (1952) que Alberto Seixas Santos se inspirou para “E o Tempo Passa” (2010), o filme que assinala o seu regresso ao cinema pelo lado da fantasia, 11 anos depois da sua anterior longa-metragem, "Mal", 1999 (ver "Um requiem português", 30 de Março). 
           Seixas Santos é um homem de grande saber do cinema e um cineasta com um estilo depurado, muito elegante, que aqui assume uma leveza especial de acordo com o tema do filme. Ocupando-se de personagens que rodam uma telenovela e vivem uma vida que faz lembrar uma telenovela, o filme acompanha as possíveis intersecções entre esses dois níveis sobretudo a partir da personagem da actriz principal, Teresa Gaivão/Sofia Aparício, na sua dobadoira entre diversos pretendentes: um príncipe francês, um jovem estudante e um talhante. Outras personagens assumem relevo narrativo, como Renata/Isabel Ruth, a amiga mais velha de Teresa, as três estudantes, a outra professora, o que se vai articulando com grande suavidade e leveza em torno de uma protagonista que começa a sentir-se envelhecer e se sente partilhada entre um passado que passou, um presente incerto e um futuro que não sabe o que vai ser.
                      
            Agarrando no que aparenta ser mais superficial, como no seu modelo assumido o cineasta mostra a inocência feminina de um modo tão convincente quanto inevitavelmente contraditório, o que faz com que o filme acabe por desabar quase todo sobre a protagonista e a respectiva intérprete, embora existam apontamentos interessantes com Simão/Américo Silva, o talhante, com Renata, que figura o que a ela a espera, e com a outra professora, mais nova do que ela e, por isso, talvez com perspectivas ainda diferentes, que criam uma ideia de diversidade. Mas "E o Tempo Passa" capta de tal modo a passagem do tempo, emblematizada no envelhecimento, ou na ideia de envelhecimento de Teresa, que rapidamente percebemos que naqueles jogos de amor e de sexo todos, mesmo os mais novos dentro de algum tempo irão passar por aquilo por que ela está a passar. Entre telenovela e vida.
                      
               Mero assistente, Simão, o talhante, parece ser aquele que, com Renata, mais escapa à filmagem da telenovela, a que, contudo, assiste, e pela qual vai acabar por ser envolvido ao envolver-se nela. Talvez este filme fora do tempo, de uma grande inteligência fílmica, seja no fim de contas um filme sobre a ascensão imparável da televisão, que tudo domina nas vidas de todos nos nossos dias e a que não podemos já escapar. Se assim for, a vida como telenovela assume no filme a configuração da vida presente, o que até confere uma outra leveza a quem como tal viva a sua própria vida.  
              Desse modo, “E o Tempo Passa”, a quinta longa-metragem de Alberto Seixas Santos, é um filme deliciosamente tecido sobre a vida e a ficção, sobre a vida como ficção, mas também e inevitavelmente um filme muito bem urdido sobre a morte do cinema, pelo menos do cinema tal como o conhecemos durante mais de um século, em que a televisão assume o papel que o teatro tinha no filme de Jean Renoir e em que a deliberada recorrência dos espelhos, uma constante na obra do cineasta, vem manter presente que estamos perante reflexos, reflexos de reflexos, portanto perante a fantasia e não a realidade directa mas um reflexo dela que, contudo, nos permite compreender e avaliar como todos envelhecemos, apesar das aparentes provas em contrário, o que a morte de Renata vem inequivocamente confirmar – ali alguém morreu. O que, tudo junto, poderá mesmo explicar uma certa auto-complacência que o filme também revela.
              Dito pela candidata a um papel, o monólogo de Bertolt Brecht com que o filme termina vem, porém, dizer-nos que, tal como o espectáculo, a vida continua. Brecht hoje? Claro que sim. É apenas uma referência maior do teatro do século XX a jogar com uma referência maior do cinema do século XX - um século que, note-se, insiste em deixar marcas profundas neste início do XXI e, desse modo, em não acabar. É tudo muito rápido em "E o Tempo Passa"? É verdade, porque "o tempo envelhece depressa", título do excelente último livro editado em português de Antonio Tabucchi (Vecchiano, Itália, 1943 - Lisboa, Portugal, 2012), um pessoano assumido e convicto com provas maiores dadas a cuja memória aqui presto sentida homenagem.

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