“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 4 de novembro de 2012

Documentário épico

               O último filme do chinês Wang Bing, "Three Sisters"/"San zimei" (2012), passou este ano, em competição, no Doclisboa 2012, 10º Festival Internacional de Cinema, e é um filme excepcional, à altura da fama de grande documentarista de que o cineasta goza. Não espanta, por isso, que tenha ganho Grande Prémio da competição internacional desta edição do Doclisboa, depois de já ter sido distinguido no Festival de Veneza com o prémio da secção Orizzonti.                                       
                    
            Como o título indica, é uma história familiar, no caso de três irmãs de 10, 6 e 4 anos, Ying, Zhen e Fen, que vivem com o avô e uma tia. Da mãe não há notícias, e quando o pai, um homem que trabalha longe e ganha pouco, chega, quer levá-las consigo para a cidade. As duas mais novas acabam por ir com ele, ficando a cargo de uns familiares, mas no final acabam por regressar. Resumo isto para situar as personagens e o filme, que é um documentário passado na região do Yunan, uma região montanhosa, filmado com grande mestria enquanto acompanha as três irmãs no seu trabalho no campo e em casa. Aliás o filme começa pelo interior da casa, e isso é significativo de uma raiz familiar daquela situação problemática, sendo esse espaço interior do início muito bem aproveitado pelo cineasta para nos dar planos de elevada composição visual, nomeadamente na iluminação.        
          É, contudo, na sua segunda parte, depois da viagem de camioneta com o pai e da sequência na escola, com o seu lado lúdico, que o filme sobe literalmente as montanhas, acompanhando as duas irmãs, e então nós temos a emoção verdadeira das alturas magníficas, e magnificamente filmadas, em que elas fazem os trabalhos do campo mais comezinhos. Entre a recolha de batatas e a alimentação dos porcos ou a recolha de detritos, na lama e na merda, ficamos a perceber a proximidade das pequenas protagonistas da terra e dos animais, o que destes as aproxima mas apesar de tudo deles as distingue ainda. Como grande cineasta, Wang Bing sabe como poucos como estar com as suas personagens, que aceitaram a sua presença no seu quotidiano para as acompanhar, as mostrar sem pieguice mas com verdadeira emoção - e para isso é sempre muito importante, além do que elas fazem, o diálogo das crianças que, aliás, com o passar do tempo, nos vão fazendo chegar a primos e amigos.
                     Three Sisters (Wang, 2012)
           Como nós bem percebemos, aquilo é gente pobre e simples, que faz o que pode para se manter no seu dia-a-dia, com muitas dificuldades e muita entreajuda. Ninguém saberia da sua existência sem este filme e este cineasta, como ninguém saberia da Vanda e da Clotilde Duarte e do Ventura sem os filmes de Pedro Costa. Mas com este filme são as próprias crianças, em especial, mas também os familiares delas, que ganham uma dimensão épica, na humanidade e humildade da sua labuta diária, anónima e desconhecida. Wang Bing, todavia, não as explora como personagens ou como seres humanos, antes as acompanha para as mostrar nos seus dias comuns e fazer aparecer, na evidência da sua vida penosa, desumana, a sua verdade.
           O documentário é considerado por  vezes um género pobre e desinteressante, em que não há vedetas, não há narrativa, não há emoção. "Three Sisters" de Wang Bing vem provar justamente o contrário, pois é um excelente documentário que tem a sua própria narrativa, é emocionante e as vedetas são as suas desconhecidas personagens. Filmado em HD, é um filme superior, de uma suprema mestria e de um enorme calor humano, como raramente aparece no cinema de ficção. O cineasta não domina apenas o espaço, o do plano, mas o tempo e todas as suas articulações, por forma a fazer do seu filme e das suas humildes personagens algo de inesquecível. A distância que guarda ou não em relação às personagens reais deste filme é a distância a que se quer colocar e nos quer colocar delas, para que de tudo o que se lhes refere nos possamos dar conta, para que possamos comprender o que ali está em causa, mostrado com clareza, e possamos acompanhá-lo com justa emoção.  
                   
           Depois do seu primeiro filme de ficção, "The Ditch"/"Jiabiangou" (2010), sobre a memória de um documentário anterior, "Fengming - A Chinese Memoir"/"He Fengming" (2007), Wang Bing, que se estreou no cinema com o seminal "Tie xi qu - West of the Tracks" (2003), com mais de 9 horas, e dirigiu um episódio, "Brutality Factory", para "O Estado do Mundo" (2007), tornou-se conhecido por os seus filmes terem sempre uma grande exigência, uma imensa dimensão humana, uma enorme qualidade estética e um intransigente alcance político, o que este seu último filme plenamente confirma. Ele é, de facto, um grande documentarista e um cineasta maior que é urgente divulgar e conhecer.

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