O cinema de Jean Marie Straub e
Danièle Huillet (1936-2006) é, há mais de quarenta anos, uma peça incontornável do cinema.
Incomodou muita gente, e continua a incomodar depois da morte dela. E ainda
bem.
Tenho a ideia de que a grande questão que os
filmes deles levantam é a da palavra. Do texto que, dito em diálogo ou em monólogo, exige um
máximo de concentração nas palavras ditas e um espaço visível, em que se situem as personagens, no plano visual.
O grande desafio é esse: prender-nos à materialidade e à literalidade da
palavra, para que ela advenha em toda a sua força e verdade reveladora, de si mesma e
daquilo que diz, naquele espaço preciso, exacto.
Será
por isso que, salvo raras excepções, os seus filmes são muito definidos a nível
visual, concentrados num espaço determinado de que a palavra emana, nasce nas vozes dos seus actores.
Espaços rasgados pelo que a palavra exige, embora sempre a palavra de alguém
muito definido, mesmo quando se trata de palavras míticas ou de
palavras codificadas por um texto fixo anterior.
Negação
do cinema? Julgo que não. Aviso para um cinema que se quer uma máquina de
produzir imagens indiferenciadas, imagens avulsas, uma cornucópia de imagens
intermutáveis. Contra o reino da incontinência da imagem, da banalidade audiovisual, a exactidão das
palavras em imagens e espaços de absoluto rigor, ditas por seres concretos, precisos, mesmo quando domina o grupo.
Tenho
mesmo a ideia de que desta maneira a palavra ganha em poder sugestivo, mesmo em
poder de abstracção, por partir das vozes de seres concretos caracterizados por uma certa
rudeza, uma certa banalidade humana indiferenciada. Ou então caracterizados por uma certa banalidade que se torna
diferenciada pela sua completa pertença a uma humanidade espessa e baça, uma
humanidade inamovível, tão ignorada quanto real.
Tenho,
por isso, também a ideia de que o espaço não fala nos filmes deles fora daquilo
que nele materialmente está, fora daquilo que ele, sem artifícios, é, na sua integridade, na sua
integralidade sem redundâcia – o quadro é o quadro, é o quadro. Quem sabe o
que está para além desse quadro, do campo que ele define? Se calhar isso não
interessa, o fora de quadro, o fora de campo – ou então é isso o que, além
do que se vê, mais interessa, numa ligação directa da palavra com o que se não vê, um fora
de campo em que estamos todos.
Materialidade
das vozes, das palavras e dos espaços, imaterialidade da palavra em espaço rarefeito. Para
além disso há sempre, irremovível e indispensável, o silêncio, como
“L’inconsolable” (2011) - um conjunto de quatro curtas-metragens de que só conheço, por enquanto, a primeira, que dá o título ao programa, baseada de novo em "Diálogos com Leucó"/"Dialoghi con Leucò", de Cesare Pavese, que já servira de base para "Da Nuvem à Resistência"/"Dalla nube alla resistenza" (1979), um dos melhores Straub/Huillet e um dos meus favoritos, "Quei loro incontri" (2006), "Le genou d'Artemisa" (2008) e " Le streghe, femmes entre elles" (2009) - exuberantemente confirma. Embora pessoalmente nem sequer procure
a consolação, não lhe sou indiferente. Eu estou também aí, portanto, com Jean-Marie.
Por falar nos melhores filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet e nos meus preferidos, recordo brevemente "A Morte de Empédocles ou Quando a Terra Voltar a Brilhar Verde Para Ti"/"Der Tod des Empedokles oder Der Erde Grün Von Neuem Euch Erglänzt" (1986), baseado na primeira versão de "A Morte de Empédocles"/"Der Tod des Empedokles", de Friederich Hölderlin, de 1798, um filme excepcional sobre o maldito, o amaldiçoado, que vibra nas vozes dos seus actores com um brio e um ímpeto raros. Em especial a parte final, com o prodigioso monólogo do protagonista contra o fundo do vulcão, o Etna, e do céu com nuvens, em que o tempo passa na paisagem escandido pelo ritmo e pela vibração das palavras, pelo sopro do vento. Nesse filme percebemos bem como os Straub respeitam o espaço e a posição de cada actor nele, cortando quando muda quem fala, por vezes para quem ouve, ou então para um espaço vazio que assiste, comovido, àquela tragédia. A profundidade de campo, embora sem aproveitamento dramático directo está aí presente para comentar, para pensar no seu espaço e na sua duração aquilo que é dito pelas vozes das personagens, como sugere Gilles Deleuze a partir da via aberta por Jean Renoir e Orson Welles (in "L'Image-temps, Les Éditions de Minuit, Paris, 1985, pág. 226) - o espaço de uma natureza não-indiferente nesse sentido. Já em "Cézanne" (1990), que abre com panorâmicas estarrecedoras, é a voz de Danièle que, com a de Jean-Marie, comenta, enquanto em "Une visite au Louvre" (2004), que fecha com uma prodigiosa panorâmica antes do plano fixo final, estão presentes as vozes de Julie Koltaï e do próprio Jean-Marie - e estes são dois filmes fundamentais, de grande beleza e sabedoria do cinema e da pintura. Mas no excelente "Itineraire de Jean Bricard" (2008), em que o travelling domina, a voz que se ouve é a do próprio Jean Bricard. "Nada é dado de graça aos mortais" ("A Morte de Empédocles").
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