"Noite e Dia"/"Bam gua nat" (2008) é a oitava das treze longas-metragens do sul-coreano Hong Sang-soo e, que eu saiba, o seu primeiro filme a estrear em Portugal, o que não deixa de ser estranho pois ele trabalha desde 1996 e é um dos mais cotados cineastas do seu país.
Passado na sua maior parte em Paris, onde chega no início um coreano que se diz pintor, Sung-nam/Yeong-ho Kim, o filme desenrola-se em tom de diário do protagonista sobre as suas deambulações num meio que desconhece mas onde vem a travar relações diversas, depois de ter encontrado uma sua antiga relação, Min-sun/Kim Yu-jin. E as principais relações que ele estabelece, a partir dos contactos de um amigo, são jovens mulheres coreanas, duas amigas que estudam em Belas-Artes, Hyun-joo/Seo Min-jung e Yu-jeong/Park Eunhye, com as quais pensa poder manter um convívio agradável. Fica marcado no filme o espaço das escadas da casa das duas amigas, onde o protagonista recorrentemente regressa, tal como é frequente o seu contacto telefónico com a sua mulher Han Seong-in/Hwang Soo-jeong, que ficou em Seul e para junto da qual ele vai acabar por regressar.
Ora o que faz a originalidade e o encanto deste "Noite e Dia" é o espantoso domínio do realizador sobre a construção formal, num espaço relativamente delimitado, o de um bairro, de que apenas se sai quando o protagonista se perde ou então quando ele vai a Deauville com as duas amigas, primeiro, só com a sua preferida, a mais nova, Yu-jeong, depois. De facto, Hong Sang-soo tem um estilo de construção do plano que situa sempre as personagens no espaço com precisão, com grande atenção às linhas de fuga e às diagonais, e um uso muito apropriado e feliz dos movimentos de câmara, em especial as panorâmicas, que sempre se mostram justificadas pois permitem sempre descobrir alguma coisa mais de novo e relevante, e dos zooms. Neste seu filme percebe-se bem como no cinema um plano é um espaço, não uma simples imagem.
Além disso, na própria narrativa há uma grande atenção aos pormenores do quotidiano do protagonista e da comunidade coreana em Paris, que permanentemente, por meios fílmicos, remetem para o concreto uma personagem que se diz pintor de nuvens - o pássaro que cai, o norte-coreano, entre outros. E quando o filme se aproxima do seu final os apontamentos que situam Sung-nam entre o seu novo amor, Yu-jeong, que uma colega de estudos desmascarara, e a mulher que deixou na terra tornam-se extremamente apelativos, dotando o filme de um fragor inebriante - um filme em que o mesmo protagonista e as suas amigas se encontram frequentemente embriagados. É o cheiro da juventude que passa, que está a passar daquela maneira por aquelas personagens - a antiga relação que começara por encontrar em Paris vem a suicidar-se, segundo ele sabe através de um jornal.
Antes de regressar a Seul sob falso pretexto, há a espantosa sequência da despedida, com panorâmicas laterais, entre os dois jovens amantes, quando ela lhe diz que suspeita estar grávida, exactamente o que a mulher dele lhe dissera estar para o fazer regressar. Mais tarde, já em casa, a mulher acorda-o para lhe dizer que ele disse, enquanto dormia, um nome feminino, que ela quer saber de quem é. Não sei, mas talvez por isto este "Noite e Dia" faz-me lembrar os primeiros filmes do grande Jacques Demy, entre Nantes e Cherbourg, o que para quem os conhecer pode dizer alguma coisa do muito apreço em que o tenho. Hong Sang-soo é, decididamente, um cineasta que me interessa. Com a 7ª Sinfoinia de Beethoven desde o início, com Courbet em quadro célebre, com a Bíblia e uma igreja a serem chamadas para alertar o protagonista e uma cidade luminosa, cuja luz entra, ofuscante, pela janela, este é um filme sobre um coreano deslocado em Paris, onde não pertence mas onde se encontra, talvez para nunca mais.
Sem comentários:
Enviar um comentário