Há nos últimos anos em Portugal uma febre de
filme histórico, especialmente sobre o século XX, o que se compreende devido à
necessidade que o país sente de recuperar, reconstruindo-a, a sua memória
colectiva. Não estará, na maior parte dos casos, primacialmente em causa a
grande qualidade dos filmes, que, contudo, por vezes se verifica, mas a necessidade de
proceder, também no cinema, a uma tecitura que permita uma nova quadrícula, aberta e sem
limitações, do século XX português.
Foi
neste quadro que eu entendi o aparecimento de “Florbela”, de Vicente Alves do Ó
(2012), a segunda longa-metragem do seu realizador e argumentista, com
experiência anterior na área do argumento e na realização de curtas-metragens. Foi assim que o encarei e se calhar
fiz mal, pois o filme, inspirado livremente na vida de Florbela Espanca
(1894-1930), um mito da literatura, da cultura e da vida portuguesa do século XX, consegue a
pouco e pouco, mas com grande atenção e acerto, centrar-se na sensibilidade própria da
protagonista, de que constrói o mistério respeitando o mito.
Este
é um filme que, situado nos anos 20, se presta a ser entendido como filme de época,
o que em certa medida efectivamente é, sem espavento mas procurando a fidelidade e o rigor na reconstituição. De facto, o seu intuito é mais precisamente o de recriar a personagem,
interpretada por Dalila Carmo, e o seu contexto social e afectivo, com destaque
para o seu terceiro marido, Mário Lage/Albano Jerónimo, e para o seu irmão,
Apeles/Ivo Canelas. A sensibilidade pessoal, feminina e exacerbada da protagonista
está muito bem definida a partir do exterior, na maior parte dos casos, e vê-se
apurada pelo encontro com o irmão, uma outra sensibilidade, aguçada e terminal
pela morte da noiva. Neste quadro, em que a poetisa diz não conseguir escrever, o
marido, um homem prático e do mundo, faz o esforço apreciável de tentar
compreendê-la, não a estragando.
O
estrago, inevitável, vai ser trazido pelo irmão (uma intrepretação notável de Ivo
Canelas), com a sua dor intransmissível e intransponível, e o melhor do filme
situa-se precisamente nessa relação entre os dois irmãos, em que entre eles passa e
não passa alguma coisa de pessoal e único, adveniente da memória comum e do consequente
afecto recíproco. Para ela, os maridos mudam e passam mas esse afecto permanece. Não sendo um filme indispensável, visto tratar-se de alguém muito
presente na memória e na história da literatura portuguesa do século XX pela
sua qualidade poética e pela sua morte precoce, “Florbela” de Vicente Alves do Ó torna-se um filme inteiramente justificado e mesmo necessário pela qualidade e a dignidade compatível e
exigível que apresenta, para o que se torna fundamental, no modo como a trata, a compreensão que revela da própria protagonista.
Construindo
gradualmente a sua protagonista e o seu mistério, e com uma Dalila Carmo em
muito bom nível e muito expressiva, este é um filme à altura daquela que
retrata, com bons apontamentos do lado do cinema, nomeadamente na regulação das distâncias e no tratamento do espaço, mas também quando oportunamente investe o imaginário, e bons
momentos a nível dramático, em especial a partir do aparecimento da ideia de morte a Florbela, nos corredores do hospital, até ao muito bem concebido e construído plano final. Num todo que se apresenta de satisfatória coerência e fidelidade biográfica, a dor íntima, pessoal, de Florbela e Apelas (também de
Mário, de uma outra maneira) torna-se visível, convincente e comovente.
Para
o caso de ainda não o terem visto, vejam este filme, porque vale muito a pena. No caso de não conheceram o que escreveu, leiam a
poesia (sobretudo a poesia) de Florbela Espanca, que neste filme surge tal como sem dúvida terá sido: uma mulher moderna, em avanço em relação ao seu tempo. No caso de já conhecerem os seus escritos, leiam-nos de novo, releiam-nos sempre, em especial a poesia. É pelo que escreveram que, enquanto forem lidos, os poetas nunca morrem.
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