“César deve morrer”/”Cesare deve
morire” (2012) assinala de modo inesperado o regresso dos irmãos Paolo e
Vittorio Taviani ao cinema, pois é um quase-documentário sobre a representação teatral
de “Júlio César”, de Shakespeare, por um grupo de presos condenados a penas
longas por crimes graves. Não fora esse facto, ser representado por reclusos ou
ex-reclusos, e o filme não apresentaria por si grandes motivos de interesse, a
não ser lidar com um autor que actualmente é muito raro aparecer no cinema - lembro-me de como Al Pacino, no seu "À Procura de Ricardo III"/"Looking for Richard" (1996), questionava os transeuntes da cidade sobre se conheciam um tal William Shakespeare.
Mas
a arte dos Taviani joga-se na passagem ao preto e branco dos ensaios, no trabalho
com cada um dos actores escolhidos sobre a sua personagem e na encenação dos
diálogos de umas com as outras. Partindo de um conhecimento básico das
personagens e da situação que estão em causa, o ensaio de cada actor
permite-lhe descobrir a sua personagem e, através dela, recordar e descobrir-se. É essa passagem entre um texto antigo de quatro séculos e a
actualidade específica em que ele é preparado e encenado que confere vitalidade
ao filme dos Taviani, a partir da esplêndida perenidade daquele, mesmo para seres como estes actores, como nós.
Reflexão
poderosa sobre o poder, a violência e a justiça, sobre como os usamos e como são usados sobre nós, a
peça ganha novos e especiais contornos na sua representação por homens naquelas
circunstâncias, que ao descobrirem-na se descobrem e questionam sobre questões fundamentais, nomeadamente sobre a justiça
que lhes foi feita, sobre aquela pena que cumprem e sobre o motivo que a ela
conduziu, sobre a sua vida presente, anterior e futura. E é quando o conflito
íntimo agarra as personagens que percebemos que aquele texto está vivo e mexe
com elas e connosco.
Feito
com as melhores intenções, “César deve morrer” permite-nos revisitar na
actualidade um texto célebre, que o cinema já usou em casos maiores, como o de
Joseph L. Mankiewicz ("Júlio César"/"Julius Caeser", 1953, com Marlon Brando como Marco António e James Mason como Brutus), com personagens definidas de forma arquétipa que podem ainda hoje ser
jogadas como num jogo de espelhos revelador. Para os actores, alguns dos quais
já tinham saído em liberdade quando o filme foi rodado, e para os espectadores.
Contudo, para os actores enquanto reclusos representar esta peça foi mais do
que apenas fazê-lo: foi entregarem-se a um jogo que é também um acto de resistência contra as condições, adversas, constrangedoras e solitárias, a que estão/estiveram submetidos.
Sem comentários:
Enviar um comentário