François Ozon é um cineasta voyeur, que cria dispositivos visuais e narrativos a partir dos quais observa o comportamento daqueles que escolhe filmar, como escreveu no seu blog Serge Toubiana. "Dentro de Casa"/"Dans la maison" (2012) não foge a essa regra, com que trabalha de forma particularmente feliz e interessante no prosseguimento de uma obra já extensa.
Há dois casais, um sem filhos, Germain/Fabrice Luchini e Jeanne/Kristin Scott Thomas, o outro, Rapha Artole/Denis Ménochet e Esther/Emmanuelle Seigner, com um filho, Rapha/Bastien Ughetto, e há um rapaz novo e dotado, Claude Garcia/Ernst Umhauer, que se infiltra no meio familiar do segundo casal através do filho, seu colega de turma que ele ajuda em Matemática, e estabelece uma relação de cumplicidade com o seu professor de francês, Germain - o filme inspira-se livremente na peça "O Rapaz da Última Fila", de Juan Mayorga, já levada à cena em Portugal pelos Artistas Unidos de Jorge Silva Melo.
O que em primeiro lugar atrai e mais prende a atenção nem sequer é cada uma das personagens individualmente, mas o princípio de instabilidade que o intruso vai levar junto daqueles com os quais passa a conviver - se quisermos, é o princípio de "Teorema" de Pier Paolo Pasolini (1968), sem o lado místico ou "sagrado" que a respeito do cineasta Gilles Deleuze assinala. Pelo contrário, neste filme François Ozon move-se ao nível do quotidiano, mantendo-se muito próximo de uma expressão teatral nos interiores. Mas, em segundo lugar, é-nos dada uma bem elaborada relação mestre-discípulo, "pai-filho", que de forma convincente faz passar o saber, filtrado pela frustração criativa do primeiro como ensinamento e estímulo para o segundo.
Claro que o discípulo excede o mestre, as instruções que dele recebe, e parte de uma experiência de consentida violação da privacidade naquilo que escreve para ele. Neste contexto, em que se descobre o profundo desejo necessário à escrita como à vida, e a necessidade de o dominar e trabalhar, o cineasta usa duas instâncias narrativas na criação dos seus dois dispositivos: o do mestre, entre a sua casa e o liceu onde ensina, com passagem pela ameaçada galeria que a sua mulher dirige, e o do discípulo, entre o mesmo liceu e a casa do seu colega, com passagem pelo recinto desportivo em que os Rapha se encontram ao fim de semana, dispositivos que no final se reúnem na invasão pelo segundo da casa do primeiro. O dispositivo voyeurista do filme desdobra-se assim entre um olhar que pretende comandar um outro olhar, que contudo lhe escapa.
O lado mais simpático de Ozon, de quem este será o melhor filme até agora, como sempre muito bem servido pelos actores, é que uma vez instalado o seu dispositivo, no caso duplo, ele não se perde com grandes artifícios de uso na linguagem do cinema, preferindo ir direito às suas personagens e ao seu assunto, sem se distrair nem nos distrair escusadamente. Será mesmo o que o distingue de João Canijo, de cujo "Sangue do Meu Sangue" (2011) este filme está, até sociologicamente, próximo. Assim, a parábola de "Dentro de Casa" funciona como um bloco, inteiro e perturbador, que abertamente questiona e inquieta.
É agora que François Ozon passa de um cineasta promissor a um cineasta a seguir com muita atenção, mostrando também ele que, no seu melhor, o cinema francês está em movimento. Quando um cineasta como ele começa a juntar várias referências de forma pessoal, como aqui acontece, é sinal de que alguma coisa de novo nasceu e cresce (ver "Uma inglesa no continente", 17 de Março de 2012).
A morte de Bernardette Laffont (1938-2013), actriz mítica da "nouvelle vague" francesa em filmes de Chabrol, Truffaut e Eustache, nomeadamente, vem confirmar que o cinema francês não pode continuar a ser visto em função do que foi nos anos sessenta, embora compreensivelmente lhe seja difícil dissociar-se da "nouvelle vague" - pelo menos tão difícil como ao cinema italiano foi fazê-lo em relação ao neo-realismo. No fundo, momentos tão importantes como esses foram não se ultrapassam, absorvem-se e integram-se. François Ozon ainda não está ao nível nem dos melhores nomes da "nouvelle vague" nem de Pier Paolo Pasolini, mas para lá caminha enquanto define o seu caminho (o que lhe interessa fazer), apura o seu uso dos dispositivos criativos (como lhe interessa fazer), e é isso que importa assinalar neste momento.
Há dois casais, um sem filhos, Germain/Fabrice Luchini e Jeanne/Kristin Scott Thomas, o outro, Rapha Artole/Denis Ménochet e Esther/Emmanuelle Seigner, com um filho, Rapha/Bastien Ughetto, e há um rapaz novo e dotado, Claude Garcia/Ernst Umhauer, que se infiltra no meio familiar do segundo casal através do filho, seu colega de turma que ele ajuda em Matemática, e estabelece uma relação de cumplicidade com o seu professor de francês, Germain - o filme inspira-se livremente na peça "O Rapaz da Última Fila", de Juan Mayorga, já levada à cena em Portugal pelos Artistas Unidos de Jorge Silva Melo.
O que em primeiro lugar atrai e mais prende a atenção nem sequer é cada uma das personagens individualmente, mas o princípio de instabilidade que o intruso vai levar junto daqueles com os quais passa a conviver - se quisermos, é o princípio de "Teorema" de Pier Paolo Pasolini (1968), sem o lado místico ou "sagrado" que a respeito do cineasta Gilles Deleuze assinala. Pelo contrário, neste filme François Ozon move-se ao nível do quotidiano, mantendo-se muito próximo de uma expressão teatral nos interiores. Mas, em segundo lugar, é-nos dada uma bem elaborada relação mestre-discípulo, "pai-filho", que de forma convincente faz passar o saber, filtrado pela frustração criativa do primeiro como ensinamento e estímulo para o segundo.
Claro que o discípulo excede o mestre, as instruções que dele recebe, e parte de uma experiência de consentida violação da privacidade naquilo que escreve para ele. Neste contexto, em que se descobre o profundo desejo necessário à escrita como à vida, e a necessidade de o dominar e trabalhar, o cineasta usa duas instâncias narrativas na criação dos seus dois dispositivos: o do mestre, entre a sua casa e o liceu onde ensina, com passagem pela ameaçada galeria que a sua mulher dirige, e o do discípulo, entre o mesmo liceu e a casa do seu colega, com passagem pelo recinto desportivo em que os Rapha se encontram ao fim de semana, dispositivos que no final se reúnem na invasão pelo segundo da casa do primeiro. O dispositivo voyeurista do filme desdobra-se assim entre um olhar que pretende comandar um outro olhar, que contudo lhe escapa.
O lado mais simpático de Ozon, de quem este será o melhor filme até agora, como sempre muito bem servido pelos actores, é que uma vez instalado o seu dispositivo, no caso duplo, ele não se perde com grandes artifícios de uso na linguagem do cinema, preferindo ir direito às suas personagens e ao seu assunto, sem se distrair nem nos distrair escusadamente. Será mesmo o que o distingue de João Canijo, de cujo "Sangue do Meu Sangue" (2011) este filme está, até sociologicamente, próximo. Assim, a parábola de "Dentro de Casa" funciona como um bloco, inteiro e perturbador, que abertamente questiona e inquieta.
É agora que François Ozon passa de um cineasta promissor a um cineasta a seguir com muita atenção, mostrando também ele que, no seu melhor, o cinema francês está em movimento. Quando um cineasta como ele começa a juntar várias referências de forma pessoal, como aqui acontece, é sinal de que alguma coisa de novo nasceu e cresce (ver "Uma inglesa no continente", 17 de Março de 2012).
A morte de Bernardette Laffont (1938-2013), actriz mítica da "nouvelle vague" francesa em filmes de Chabrol, Truffaut e Eustache, nomeadamente, vem confirmar que o cinema francês não pode continuar a ser visto em função do que foi nos anos sessenta, embora compreensivelmente lhe seja difícil dissociar-se da "nouvelle vague" - pelo menos tão difícil como ao cinema italiano foi fazê-lo em relação ao neo-realismo. No fundo, momentos tão importantes como esses foram não se ultrapassam, absorvem-se e integram-se. François Ozon ainda não está ao nível nem dos melhores nomes da "nouvelle vague" nem de Pier Paolo Pasolini, mas para lá caminha enquanto define o seu caminho (o que lhe interessa fazer), apura o seu uso dos dispositivos criativos (como lhe interessa fazer), e é isso que importa assinalar neste momento.
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