“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 6 de julho de 2013

Durante o fim

    Chega-nos agora a terceira longa-metragem, segunda para cinema depois de "Salto Mortal"/"Somersault" (2004), que não conheço, da autraliana Cate Shortland, "Lore" (2012), que é um filme impressionante não apenas pela sua narrativa como pela sua construção cinematográfica. De facto, de princípio a fim a cineasta mantém-se fiel à opção pelo grande-plano ou por planos aproximados, o que nos mantém permanentemente sobre os rostos dos actores, atentos aos seus traços e movimentos faciais.
                      lore
      O filme ocupa-se de uma época pouco tratada pelo cinema, mesmo pelo cinema alemão, a que se seguiu à ocupação da Alemanha pelos Aliados no final da II Guerra Mundial. A protagonista, cujo nome dá o título ao filme, Lore/Saskia Rosendahl, percorre a Alemanha, da casa dos seus pais para a de uma familiar, Omi/Eva Maria Hagen, levando consigo os irmãos mais novos e acompanhada, a partir de certa altura, por um jovem judeu que diz chamar-se Thomas/Kai Malina. Os percalços e obstáculos são diferentes nesse percurso, ao longo de caminhos de floresta e utilizando diversos meios de transporte.          
      Não vou contar o filme mas apenas chamar a atenção para o que comecei por dizer: "Lore" mantém-se de princípio a fim fiel à opção de Cate Shortland pelo grande-plano ou planos aproximados. Ora isto significa a utilização do que Gilles Deleuze denomina Imagem-Afecção, pois o grande-plano do rosto é o meio cinematográfico apto para transmitir filmicamente o afecto ou a afecção. Cito-o: "A imagem-afecção é o grande-plano e o grande plano é o rosto..." (cf. "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, pág. 125). Aliás, a realizadora não se limita ao grande-plano de rosto, já que o utiliza com grande pertinência como plano de pormenor relativamente a partes do corpo, a objectos, o que leva a que a maior parte do filme se expresse de forma afectiva e a que essa expressão o invada.
                     
        Todavia, esta opção revela-se especialmente adequada às personagens e à situação que elas vivem naquilo que apeteceria chamar o ano zero da Alemanha, não se dera o caso de esse ser o título de um conhecido e muito importante filme de Roberto Rossellini, "Alemanha Ano Zero"/"Germania, Anno Zero" (1948), de que "Lore" apesar de tudo se aproxima, diria que inevitavelmente. O filme tem momentos notáveis, relativos aos perigos que a protagonista e os seus acompanhantes atravessam e às respectivas reacções, em especial quando se trata de neutralizar um soldado alemão que em Lore sente "o cheiro da morte" e na morte do pequeno Gunter/André Frid, mas também quando as personagens descobrem o que aconteceu no seu país durante a guerra. Na grande proximidade em que, como espectadores, somos permanentemente mantidos, com abolição de qualquer profundidade de campo salvo nos ocasionais planos médios, tudo o que acontece às personagens chega-nos ampliado pela escala dos planos.
        Pode considerar-se esta opção formal de Cate Shortland, também co-argumentista com Robin Mukherjee, uma opção discutível, mas ela revela-se muito ajustada por ir contra o espectáculo que mesmo uma guerra tremendamente devastadora, como foi a II Guerra Mundial, enquanto está a acabar pode proporcionar, e implicar uma proximidade por vezes sufocante com aqueles que, durante o fim dessa guerra, sofrem e tentam chegar a salvo ao seu destino. Não conheço o romance "The Dark Room", de Rachel Seiffert, em que este filme se baseia, mas não tenho dúvidas sobre a bondade da opção da cineasta na sua transposição cinematográfica, surpreendente e muito apropriada, num caminho em que, formalmente, a precederam Carl Th. Dreyer e Robert Bresson.
                    
        Sem a distância que o filme em momento algum permite, as reacções das personagens, sobretudo da protagonista, ao que vão encontrando pela frente e descobrindo sobre o que aconteceu na Alemanha - sobre os seus próprios pais, sobre os campos e o extermínio - tornam-se inescapáveis porque se impõem por si mesmas na construção muito segura e sem concessões de "Lore". As fotografias a preto e branco, de época, são, por sua vez, muito bem utilizadas.
       Para ver várias vezes, para não deixar escapar nada deste filme corajoso, subjugante e absorvente.

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