Fiel ao dispositivo cenográfico e fílmico a que, com modulações, tem regressado recorrentemente nas últimas décadas, baseado no plano longo e fixo em interiores, Manoel de Oliveira faz de "O Gebo e a Sombra"/"Gebo et l'ombre" (2012) um exercício cinematográfico fascinante e desafiador, ao nível do seu melhor.
Filmado em França e em francês, com actores internacionais - Michael Lonsdale, Claudia Cardinale e Jeanne Moreau - e portugueses - Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra e Ricardo Trêpa -, este filme baseia-se na peça de teatro homónima de Raul Brandão, um dos melhores e mais míticos escritores portugueses da primeira metade do século XX. Obra filosófica pelas personagens e situações que descreve e pela narrativa, a peça original é adaptada e alterada pelo cineasta de uma forma pessoal que, intrigantemente, não só a reduz, suprimindo-lhe o final, como lhe altera a primitiva filosofia.
Penso que há neste filme, à semelhança de outros e até mais do que noutros filmes de Manoel de Oliveira, uma separação clara entre homens e mulheres, apesar de toda a cumplicidade estabelecida entre Gebo, o pai, e Sofia. Até à chegada de João, a Sombra, dominam as personagens femininas que rodeiam o pai, e tudo se passa no sentido de que a mãe, Doroteia, não saiba de nada. Mas depois da chegada dele tudo muda, porque passa a existir e a prevalecer o conflito entre duas maneiras opostas de viver e de ver o mundo, duas atitudes que se vêm a materializar na posição perante o dinheiro.
Decorrendo na sua maior parte num mesmo cenário, a sala da casa de uma família pobre, o que é um dado narrativo importante, "O Gebo e a Sombra" de Manoel de Oliveira conserva durante muito tempo o plano fixo frontal mas vem a dar-lhe um contracampo não apenas aquando da visita do Chamiço e da Candidinha, mas também sobre a parte vazia da sala, o que confere àquele espaço a configuração de um cubo ou de um paralelipido no interior do qual se estabelece e é vivido aquele conflito humano. Um conflito que opõe pai e filho também sobre a culpa - o filho diz logo no início que a culpa não foi dele, o pai diz no fim ser ele o culpado, assumindo desse modo uma culpa que não é dele mas do filho - e que ganha corpo no conflito de interpretações entre um estarrecedoramente seguro e concentrado Michael Lonsdale, assombroso, e um arrebitado Ricardo Trêpa, insuficiente para o seu papel, que é fundamental.
Mas mais. Vai ser no interior desse espaço, ao qual se acede através de um primeiro plano com Sofia, a mulher de João, junto da janela, que se chega a ver reflectida no interior da vidraça, que Oliveira vai filmar Leonor Silveira como porventura a não terá filmado desde "Vale Abraão" (1992), numa homenagem a ela mas também à antiga, e até à actual beleza da Cardinale e da Moreau. A exploração da profundidade de campo no filme tem-na mesmo a ela como um dos seus principais motivos.
Dir-se-ia que a moral do filme é uma moral conservadora mas segura, enquanto a atitude de João estará de acordo com o julgamento que ele faz dos mais velhos e da vida que eles, resignados, vivem. Concorde-se ou não com ele, o conflito de moralidades está presente no filme que, pela sua construção formal, lhe dá todo o destaque. Verdadeiro ou falso conflito, e até conflito de gerações e de modos de vida, ele está muito convincentemente dado no último filme de Manoel de Oliveira como um conflito primordial, clássico, que atravessa, no fundo, toda a obra do cineasta: cumprir o dever até ao fim ou revoltar-se.
Tal como realizado em cinema por Manoel de Oliveira, "O Gebo e a Sombra!" torna-se um conflito primordial, universal, num filme em que apenas o tocar dos sinos, a representação de Luís Miguel Cintra e a trança de Leonor Silveira remetem ainda para Portugal. E o mais curioso é que nesse conflito quem se submete (à ordem estabelecida), cumprindo o seu dever até ao fim, assume como própria uma culpa que não é sua, enquanto que quem se revolta diz desde o início que a culpa não foi sua - sublinho-o porque é, a meu ver, importante. Ora nesta situação dramática será preciso perceber que os dois, pai e filho, não podem ter razão ao mesmo tempo. Ou podem? Entre um Michael Lonsdale sentado e um Ricardo Trêpa de pé durante a maior parte do tempo, no filme é o Gebo quem leva a melhor. Até no final, que permanece em paralítico. É uma simples questão de interpretação, de ocupação do espaço, de intensidade do olhar, de espessura humana. Por isso, é preciso ver João, a Sombra, para além do actor, como figura oliveiriana que é.
Note-se ainda o regresso de Renato Berta na direcção de fotografia, o que não acontecia num filme do cineasta desde "Espelho Mágico" (2005). Ele não é alheio à qualidade visual que o filme, em iluminação, textura e cor apresenta.
Tal como realizado em cinema por Manoel de Oliveira, "O Gebo e a Sombra!" torna-se um conflito primordial, universal, num filme em que apenas o tocar dos sinos, a representação de Luís Miguel Cintra e a trança de Leonor Silveira remetem ainda para Portugal. E o mais curioso é que nesse conflito quem se submete (à ordem estabelecida), cumprindo o seu dever até ao fim, assume como própria uma culpa que não é sua, enquanto que quem se revolta diz desde o início que a culpa não foi sua - sublinho-o porque é, a meu ver, importante. Ora nesta situação dramática será preciso perceber que os dois, pai e filho, não podem ter razão ao mesmo tempo. Ou podem? Entre um Michael Lonsdale sentado e um Ricardo Trêpa de pé durante a maior parte do tempo, no filme é o Gebo quem leva a melhor. Até no final, que permanece em paralítico. É uma simples questão de interpretação, de ocupação do espaço, de intensidade do olhar, de espessura humana. Por isso, é preciso ver João, a Sombra, para além do actor, como figura oliveiriana que é.
Note-se ainda o regresso de Renato Berta na direcção de fotografia, o que não acontecia num filme do cineasta desde "Espelho Mágico" (2005). Ele não é alheio à qualidade visual que o filme, em iluminação, textura e cor apresenta.
Filosofante e inquieto, o decano do cinema português e do cinema mundial prossegue, implacável e desafiador, o seu originalíssimo caminho, pelo que deve ser justamente reconhecido e felicitado. Com Manoel de Oliveira temos sempre grande cinema e "O Gebo e a Sombra" é um dos seus melhores filmes.
O que, nestas circunstâncias, considero mais curioso e motivo de especial regozijo é que o Mestre não se acomoda nem se repete, antes se continua e acrescenta sempre. Não se rende, nem perante a idade, nem perante a fama, o que só faz aumentar o meu respeito e a minha admiração por ele.
Nota
Felicito o Jornal de Letras (nº 1096, de 3 de Outubro) e o Ípsilon do Público (de 5 de Outubro) pelos dossiers oportunos, condignos e interessantes que dedicaram a Manoel de Oliveira a propósito da estreia deste seu último filme.
O que, nestas circunstâncias, considero mais curioso e motivo de especial regozijo é que o Mestre não se acomoda nem se repete, antes se continua e acrescenta sempre. Não se rende, nem perante a idade, nem perante a fama, o que só faz aumentar o meu respeito e a minha admiração por ele.
Nota
Felicito o Jornal de Letras (nº 1096, de 3 de Outubro) e o Ípsilon do Público (de 5 de Outubro) pelos dossiers oportunos, condignos e interessantes que dedicaram a Manoel de Oliveira a propósito da estreia deste seu último filme.
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