“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A luz e as trevas

         Recortadas a negro sobre espaços vazios, desabitados, as dez fotografias de "Gloom", exposição que tem lugar no novo espaço da Quadrado Azul, na Rua Reinaldo Ferreira, 20-A, em Alvalade (Lisboa), dão-nos o olhar atento e depurado de Paulo Nozolino, um fotógrafo de excepção. Esta exposição começa, porém, com um poema de Bertolt Brecht, "Aos que vão nascer", traduzido por João Barrento, que  começa "É verdade, vivo em tempo de trevas!" e funciona como instruções de leitura para o visitante.
         As dez fotografias de "Gloom" são, como é habitual neste fotógrafo, a preto e branco, provas em brumeto de prata sobre alumínio, com o formato de 120x80cm, e preenchem as quatro paredes da sala da exposição de forma espaçada e bem distribuída, por forma a permitir uma aproximação e observação clara de cada uma e do conjunto. São fotografias tiradas na Bretanha, em França, e dão os restos, as sobras deste nosso mundo, sem figuras humanas ou sombra delas, apenas vestígios, ou nem isso, apenas detritos que funcionam como vestígios.
                                   
           Uma mesa vazia com uma pequena colher em cima, uma pá no solo, o intervalo entre duas paredes mostrado de viés, um urinol, uma tomada numa parede escalavrada, uma lâmpada que pende junto a uma parede. A visão intransigente do artista apenas nos dá objectos a diversas distâncias, mas em cada fotografia há um trabalho aturado sobre a luz e a sombra, cujo contraste é de novo central, como nas suas anteriores exposições.
           Regulando as distâncias e dominando os contrastes, Paulo Nozolino consegue dar em cada uma destas dez fotografias o lado material dos objectos em espaços vazios, o que decorre do seu insólito isolamento. Sobre o mundo actual e quem nele vive é isto que ele tem a dizer, e é extremamente eloquente sobre um tempo de trevas, para que remete o poema liminar de Brecht. As fotografias 2 e 9 são feitas e trabalhadas de tal modo que o contraste de luz e sombra evidencia o seu lado táctil, a primeira com o que sobrou de vigas de madeira que se cruzam, formando em crucifixo, um lenho vazio fruto do acaso, da erosão do tempo.
                   https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhzKjn7kArbCu2mCu555lCfrMjCz8_YpF873w84cqFN-0M4nuLqTeJ6RNddh6M2I8Ba5zeJvv_fmWGvl5PKjnFY6b1buMUcWZIrZ2hhGKCUvBdFMK0PqF_GPb-h9rzUxSULeDDcty86RY4/s1600/IMG_0435.JPG
             Ao olhar para onde olha e ao mostrá-lo como o mostra, o fotógrafo-artista prossegue um percurso pessoal único e admirável, que chega na última fotografia a uma grande proximidade que impõe o imediato e impede a percepção clara do objecto no seu todo. Cada uma destas dez fotografias é o resultado de um trabalho artístico exemplar, como se de cada uma delas dependesse o futuro do mundo, e se calhar até depende, num mundo em que são elas que falam por todos nós nas trevas em que vivemos. Umas trevas que é necessário perceber de que luz provêm, pois não há trevas sem luz, e esse é mesmo o tema destas dez fotografias.
             A depuração extrema de "Gloom" é a quinta-essência do trabalho de Paulo Nozolino, um artista inquieto e sempre em movimento, que nos impede de parar e felizmente, companhia preciosa, continua a acompanhar-nos. O branco nas suas fotografias é sempre desenhado pelo negro, com que contrasta, e o negro prolonga a luz de que devia nascer, e até nasce. Esta é a arte que interessa, que me interessa. Até 20 de Junho na Quadrado Azul.          
            
Nota
Sobre Paulo Nozolino ver "Que nada se sabe", 5 de Fevereiro de 2012, e "O tudo e o nada", 15 de Dezembro de 2012.

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