O americano John Carpenter foi um caso à parte e destacado no cinema da Nova Hollywood saída da reestruturação dos estúdios da era clássica, tornada necessária pela crise em que os lançara a concorrência da televisão durante os anos 50. Herdeiro do cinema clássico americano, nomeadamente de Howard Hawks e dos géneros, Carpenter foi também em muito devedor do espírito e do estilo da Série B.
Esclareço que falo no passado porque John Carpenter é, neste momento, uma questão pretérita, com duas longas e duas curtas-metragens desde o início do Século XXI, das quais "O Hospício"/"The Ward" (2010) funciona como confirmação de um declíneo indesejável mas insofismável. Pelo que se pode antecipar neste momento, é previsível que ele ressuscitará para mais um ou outro filme final, que se espera e deseja recupere o seu espírito, o seu estilo e a sua poética no seu melhor.
Depois de um preliminar "Estrela Negra"/"Dark Star" (1974), o primeiro filme oficial de Carpenter, "Assalto à 13ª Esquadra"/"Assault on Precinct 13" (1976), recupera explicitamente o esquema narrativo de "Rio Bravo", de Howard Hawks (1959), pelo cerco feito à prisão de uma esquadra onde estão detidos três prisioneiros, embora esse não seja o seu único motivo narrativo. Agarrando assim a figura da inversão da Imagem-Acção que, segundo Gilles Deleuze, transforma em pequena a grande forma (in "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 226-228), o cineasta vai manter-se fiel a essa inspiração em "Veio do Outro Mundo"/"The Thing" (1982), remake de "A Ameaça"/"The Thing from Another World" (1951), de Christian Niby com supervisão de Howard Hawks, perguntando-se no final se a coisa estranha, o monstro alienígena, não estará dentro do próprio protagonista, de que se terá apoderado, ou seja, dentro de cada um de nós.
Uma tal suspeitosa sugestão vai ser o que de aproveitável e carpenteriano existe ainda em "O Hospício". Entretanto, John Carpenter enfrentara o filme de terror e revisitara os clássicos, nomeadamente Alfred Hitchcock e Fritz Lang, em "O Regresso do Mal"/"Halloween" (1978), "O Nevoeiro"/"The Fog" (1980) e "O Carro Assassino"/"Christine" (1983), que firmaram a sua fama no género, e entrara com estardalhaço no espírito e no estilo da Série B, que na sua obra vinha de "Assalto à 13ª Esquadra", com "Jack Burton nas Garras do Mandarim"/"Big Trouble in Little China" (1986), em que a acção voltava a dominar.
Mas os filmes em que, a meu ver, se explicita e exprime melhor a poética de John Carpenter vão ser "Nova Iorque 1997"/"Escape from New York" (1981), "Eles Vivem"/"They Live" (1988), "Fuga de Los Angeles"/"Escape from L. A." (1996) e "Vampiros de John Carpenter"/"John Carpenter's Vampires" (1998), uma tetralogia que forma o núcleo duro da sua obra - uma obra em que "Elvis", feito para a televisão, funciona como esclarecedor do interesse do cineasta, frequentemente também compositor e argumentista dos seus filmes, pela música. "O Homem das Estrelas"/"Starman" (1984) e "O Príncipe das Trevas"/"Prince of Darkness" (1987) são como o verso e reverso do mesmo sonho (americano).
Nas "Fugas" está presente o carismático e rebelde marginal Snake Plissens/Kurt Russell (que foi o actor-fétiche do cineasta), encarregado de missões de interesse nacional: resgatar um presidente raptado, cumprir a missão que lhe é cometida por um presidente vitalício, em ambos os casos em luta contra o tempo, o que dá também a estes dois filmes o tom de fuga em sentido musical. Aí o esquema matricial de "Assalto à 13ª Esquadra" é invertido, colocado de novo sobre os pés da grande forma da Imagem-Acção: há um estado de coisas, uma situação que é necessário transformar através de uma acção que só alguém como Plissens está à altura de empreender e cumprir. As alusões crípticas do sistema e da América abundam, em especial no segundo filme.
Contudo, olhando atentamente, é "Eles Vivem" o filme fulcral quer do ponto de vista da acção de um herói solitário quer do ponto de vista da crítica do sistema, pois aí o protagonista, Nada/Roddy Piper, defronta-se com as imagens daqueles que, como imagens, se tornaram já os senhores e os inimigos numa realidade só acessível através de óculos especiais, o que torna a alusão à própria sociedade americana na época do reaganismo e ao cinema hollywoodiano explícita e clara. E esse é um filme fulcral também porque o seu herói não é carismático, mas um tipo qualquer, um operário, o que pela primeira vez, embora na linha de "Nova Iorque 1997", remete de forma clara para o cinema de Sam Peckinpah (ver "Poética de Sam Peckinpah", 25 de Março de 2013).
Se os hologramas de "Fuga de Los Angeles" aludem a um novo tipo de imagens não é, pois, por acaso e sem precedentes. E que "Vampiros de John Carpenter" recupere uma figura e uma imagem do próprio cinema clássico não é, também, inocente - e aí não é apenas visado o sistema mas a própria religião, que é discutida entre um dignitário indigno da Igreja Católica e um padre combativo (sendo tudo ficção, como é natural, permite por isso mesmo tornar a discussão mais acessível). Mas também aí um dos protagonistas é vampirizado, ou seja, o mal passa a ser-lhe interior, na sequência do que estava contido em "A Coisa", e volta a verificar-se a luta contra o tempo, como nas "Fugas", como nelas conferindo ao filme o tom de fuga musical que o torna mais que perfeito.
Um segundo aspecto que releva da influência de Sam Peckinpah é a estilização das cenas de violência exacerbada, que são frequentes e soberbamente encenadas nesta tetralogia, com remissões também para o cinema clássico e o próprio cinema mudo, e a mais longa cena de pancada de que há memória no cinema americano em "Eles vivem".
Entretanto (e este entretanto é muito importante), "Memórias de um Homem Invisível"/"Memoirs of an Invisible Man" (1992), "A Bíblia de Satanás"/"In the Mouth of Madness" (1994) e "A Cidade dos Malditos"/"Village of the Damned" (1995), remake de "A Aldeia dos Malditos"/"Village of the Damned", de Rolf Villa (1960), revisitavam o passado do cinema e a americana figura do mal, actualizando-a de forma superior em termos fílmicos e narrativos, na linha de "O Príncipe das Trevas", o que deve ser considerado um filão de inspiração muito importante do cineasta, mesmo como formando uma segunda tetralogia na sua obra, da qual, depois de "O Regresso do Mal" e os filmes que se lhe seguiram, resultará principalmente a sua fama como grande mestre do filme de terror.
Quis-se ver em John Carpenter um mero representante, entre outros, de um cinema gore, que também, mas não exclusivamente, foi, com o que se pretendeu catalogá-lo e torná-lo inofensivo. Ora percebe-se bem revendo os seus filmes que ele foi (retomo o passado) um prodigioso cineasta de filmes de acção, que até recuperam o herói solitário, com eventual grupo de apoio mas sem grupo de pertença, como no western, ou então recuperam o grupo como tal - como Wild Bunch. Do outro lado, as ambíguas figuras do mal merecem uma atenção especial como reveladoras e levam o cineasta para uma outra vertente relevante da sua obra.
Na sua audaciosa estrutura temporal, "Fantasmas de Marte de John Carpenter"/"Ghosts of Mars" (2001) já diminui a carga activa que vinha dos filmes anteriores, embora tente recuperar a figura do prisioneiro, que vinha de "Assalto à 13ª Esquadra", para uma nova situação exterior, o que até tem precedentes no western, nomeadamente em "O Comboio das 3 e 10"/"3:10 to Yuma", de Delmer Daves (1957). Pela sua própria estrutura temporal esse era já um filme mais elaborado formalmente e mesmo narrativamente, o que preludiava o impasse que os episódios televisivos que se seguiram, "John Carpenter's Cigarrete Burns" (2005) e "Pro-Life" (2006), na sua própria qualidade superior e no seu tom inequivocamente pessoal iriam confirmar antes mesmo da chegada do teminal "O Hospício" vir mostrar que o impasse era afinal um beco sem saída.
Rebelde nos seus próprios termos e pelas suas próprias causas, John Carpenter assumiu no seu cinema um muito pessoal e interessante lado de crítica activa e na acção, mesmo, e até especialmente, quando com o tempo contado sempre a avançar para o confronto final. Ainda não é a pura adrenalina de Quentin Tarantino, que sofre outras influências, mas foi ele quem, na Nova Hollywood, levou mais longe e de forma mais pura um idealismo próprio do melhor do cinema americano desde a sua era clássica, que não hesita na estigmatização do mal. A sua foi, portanto, uma poética da acção pura e dura, em todas as suas vertentes, sem evitar o fantástico, o terror ou a ficção científica, que terão mesmo originado na sua obra uma poética do filme de terror. Mas a acção nos seus filmes tinha, ela própria, um carácter musical, com a música da sua própria autoria, o que poderá permitir falar, pelo menos nos melhores casos, de uma poética musical da acção.
Teve argumentos seus que não pôde realizar pessoalmente e foram levados ao cinema por outros, assim como esteve na origem do argumento de filmes para televisão e mesmo de jogos de vídeo, além do que foram ou estão a ser preparados remakes de alguns dos seus filmes. Olhou de frente a América e nela identificou o próprio mal como nenhum outro. Não se podia ir mais longe do que ele, grande entre os maiores, foi.
Se os hologramas de "Fuga de Los Angeles" aludem a um novo tipo de imagens não é, pois, por acaso e sem precedentes. E que "Vampiros de John Carpenter" recupere uma figura e uma imagem do próprio cinema clássico não é, também, inocente - e aí não é apenas visado o sistema mas a própria religião, que é discutida entre um dignitário indigno da Igreja Católica e um padre combativo (sendo tudo ficção, como é natural, permite por isso mesmo tornar a discussão mais acessível). Mas também aí um dos protagonistas é vampirizado, ou seja, o mal passa a ser-lhe interior, na sequência do que estava contido em "A Coisa", e volta a verificar-se a luta contra o tempo, como nas "Fugas", como nelas conferindo ao filme o tom de fuga musical que o torna mais que perfeito.
Um segundo aspecto que releva da influência de Sam Peckinpah é a estilização das cenas de violência exacerbada, que são frequentes e soberbamente encenadas nesta tetralogia, com remissões também para o cinema clássico e o próprio cinema mudo, e a mais longa cena de pancada de que há memória no cinema americano em "Eles vivem".
Entretanto (e este entretanto é muito importante), "Memórias de um Homem Invisível"/"Memoirs of an Invisible Man" (1992), "A Bíblia de Satanás"/"In the Mouth of Madness" (1994) e "A Cidade dos Malditos"/"Village of the Damned" (1995), remake de "A Aldeia dos Malditos"/"Village of the Damned", de Rolf Villa (1960), revisitavam o passado do cinema e a americana figura do mal, actualizando-a de forma superior em termos fílmicos e narrativos, na linha de "O Príncipe das Trevas", o que deve ser considerado um filão de inspiração muito importante do cineasta, mesmo como formando uma segunda tetralogia na sua obra, da qual, depois de "O Regresso do Mal" e os filmes que se lhe seguiram, resultará principalmente a sua fama como grande mestre do filme de terror.
Quis-se ver em John Carpenter um mero representante, entre outros, de um cinema gore, que também, mas não exclusivamente, foi, com o que se pretendeu catalogá-lo e torná-lo inofensivo. Ora percebe-se bem revendo os seus filmes que ele foi (retomo o passado) um prodigioso cineasta de filmes de acção, que até recuperam o herói solitário, com eventual grupo de apoio mas sem grupo de pertença, como no western, ou então recuperam o grupo como tal - como Wild Bunch. Do outro lado, as ambíguas figuras do mal merecem uma atenção especial como reveladoras e levam o cineasta para uma outra vertente relevante da sua obra.
Na sua audaciosa estrutura temporal, "Fantasmas de Marte de John Carpenter"/"Ghosts of Mars" (2001) já diminui a carga activa que vinha dos filmes anteriores, embora tente recuperar a figura do prisioneiro, que vinha de "Assalto à 13ª Esquadra", para uma nova situação exterior, o que até tem precedentes no western, nomeadamente em "O Comboio das 3 e 10"/"3:10 to Yuma", de Delmer Daves (1957). Pela sua própria estrutura temporal esse era já um filme mais elaborado formalmente e mesmo narrativamente, o que preludiava o impasse que os episódios televisivos que se seguiram, "John Carpenter's Cigarrete Burns" (2005) e "Pro-Life" (2006), na sua própria qualidade superior e no seu tom inequivocamente pessoal iriam confirmar antes mesmo da chegada do teminal "O Hospício" vir mostrar que o impasse era afinal um beco sem saída.
Rebelde nos seus próprios termos e pelas suas próprias causas, John Carpenter assumiu no seu cinema um muito pessoal e interessante lado de crítica activa e na acção, mesmo, e até especialmente, quando com o tempo contado sempre a avançar para o confronto final. Ainda não é a pura adrenalina de Quentin Tarantino, que sofre outras influências, mas foi ele quem, na Nova Hollywood, levou mais longe e de forma mais pura um idealismo próprio do melhor do cinema americano desde a sua era clássica, que não hesita na estigmatização do mal. A sua foi, portanto, uma poética da acção pura e dura, em todas as suas vertentes, sem evitar o fantástico, o terror ou a ficção científica, que terão mesmo originado na sua obra uma poética do filme de terror. Mas a acção nos seus filmes tinha, ela própria, um carácter musical, com a música da sua própria autoria, o que poderá permitir falar, pelo menos nos melhores casos, de uma poética musical da acção.
Teve argumentos seus que não pôde realizar pessoalmente e foram levados ao cinema por outros, assim como esteve na origem do argumento de filmes para televisão e mesmo de jogos de vídeo, além do que foram ou estão a ser preparados remakes de alguns dos seus filmes. Olhou de frente a América e nela identificou o próprio mal como nenhum outro. Não se podia ir mais longe do que ele, grande entre os maiores, foi.
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