“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Sombras do passado

          Não se parece com nada a primeira longa-metragem de ficção de Ignacio Oliva, "La rosa de nadie"/"Nobody's Rose" (2011), um filme rodado em Cuenca, Espanha, com argumento baseado em factos reais do próprio realizador. E não se parecer com nada significa que, narrativa e formalmente, é inútil dedicarmo-nos ao exercício cinéfilo de perguntar quais as suas influências, embora ele tenha implícito um conhecimento alargado da história do cinema, em especial do cinema moderno.
          De uma grande sobriedade e de uma grande beleza, este filme investe narrativamente uma história comum embora humanamente radicada na memória e na perda: a memória de Daniel de uma mulher, Manuela, que no passado o levou ao hospital depois de assaltado e agredido, e que ele vai procurar encontrar de novo, a perda de Manuela cujo filho, Jaime, morreu. O encontro de ambos na casa dela, que tem escrita em duas paredes a frase Sólo queda nada, vai ser, assim, o encontro de duas solidões, embora Daniel suspeite que ela poderá ser para ele uma verdade sem solução. O final está muito bem construído sobre o que ele, cujo avô combateu na Resistência e morreu num campo de concentração nazi, chama a particular "solução final" dela e fecha um círculo que tinha começado quando do seu primeiro encontro.
           A  beleza deste filme está presente na sua construção visual, com planos de uma grande elaboração formal em que, para além de deixar sempre espaço aos seus actores, o realizador faz com que tudo o que está presente em cada plano, do plano geral ao primeiro plano, signifique por si na expressão fílmica, pela sua conformação cenográfica, cor, função, iluminação e pela sua situação no espaço, que se rebate sobre a superfície, como numa pintura - a profundidade de campo é mesmo negada em vários momentos, acentuando esse efeito de superfície de forma inteligentemente cinematográfica. Isto significa que "La rosa de nadie" tem uma importante dimensão plástica, em objectos, formas e cores presentes em cada plano, do primeiro plano ao plano afastado, em que as personagens surgem do fundo e caminham na direcção da câmara, ou dela se afastam sempre caminhando, ou antão caminham descrevendo um percurso horizontal definido, como sucede com Jaime, o filho de Manuela.
            Por sua vez, a música é muito bem utilizada, conferindo um tom próprio e contemporâneo a um filme que se constrói narrativamente com o uso frequente e justo da elipse e com o recurso a diversos e compreensíveis flashes do passado, formalmente com o aproveitamento sempre bem construído do fora de campo e do ruído ambiente. Neste contexto, as personagens secundárias tornam-se muito importantes, por darem as relações em gerações diferentes da dos protagonistas, as gerações do pai e do filho dela, com apontamentos muito curiosos sobre o pai dela e a sua jovem empregada chinesa, o dono do bar e a sua mãe, personagens que identificamos e acompanhamos no esboçar de outras, as suas histórias, de outras narrativas.
             Mas há outros apontamentos de artista neste filme, como a precisão do enquadramento, o súbito e fugidio aparecer do espaço vazio - como dois planos consecutivos de um céu azul, no primeiro dos quais ele é apenas atravessado por uma nuvem branca, no segundo surge por cima do topo de edifícios -, o desdobrar de uma cena em diversos planos, sempre justificados por razões visuais além das próprias personagens, a pressença do ruído ambiente. Os actores são surpreendentemente bons, com destaque para Ana Otero, muito bonita e sempre muito expressiva, e Carlos Leal, sempre muito seguro na defesa da sua personagem, ambos actuando em retenção, o que contamina todo o filme.
            Este não é, pois, um filme que caiba nos lugares-comuns da crítica de cinema, sempre refractária ao que num filme está para além dos actores e da narrativa, pois em "La Rosa de nadie" a imagem está, toda ela, sempre a falar por si própria e atenta ao que de mais sensível e secreto pode estar presente, mas também escondido em cada personagem, o que aqui os actores compreendem muito bem e as elipses ajudam a perceber na própria dispersão e diversidade das personagens.
         Uma primeira longa-metragem de ficção de um cineasta que anteriormente se tinha apenas dedicado ao documentário, este é um filme que defende o cinema com argumentos do próprio cinema - a fotografia é de Ángel Sáenz, a música de Rámon Paus e o som, directo, de Oscar Barros, que à semelhança dos actores se percebe terem tido uma participação criativa activa e muito positiva. Ignacio Oliva vem demonstrar com este seu filme de estreia na ficção que é possível fazer um bom filme com produção independente e sem recurso aos lugares-comuns da produção comercial, pelo que esta é uma estreia muito auspiciosa.

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