“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 12 de maio de 2013

Na fronteira

       João Canijo não pára. Logo a seguir a "Sangue do Meu Sangue" (2011), um filme bastante bom, estreia agora "É o Amor" (2013), uma filme ainda mais inesperado que o anterior na sua obra, em que consegue a proeza notável de construir um bom documentário em que introduz uma personagem exterior mas que se integra no meio de forma a integrar, ela também, o registo documental, embora alterando-o - e aí poderia residir o maior segredo e motivo de interesse do filme.
                    
        De facto, a actriz Anabela Moreira, intérprete habitual dos filmes do cineasta desde "Noite Escura" (2004) e com papel de especial relevo desde "Mal Nascida" (2007), surge aqui como ela própria no meio da aldeia piscatória, Caxinas, em que vivem Sónia e as outras mulheres que com ela trabalham. Tudo poderia exceder o circunstancial dado a actriz, co-argumentista com o próprio realizador, se expôr pessoalmente perante a câmara de João Canijo e a câmara que ela própria maneja. De facto, aí o filme, que de resto tem apontamentos notáveis na troca de impressões entre as mulheres sobre os homens, o amor, a felicidade, assume a dimensão de documentário sobre a própria actriz, o que faz lembrar os filmes de Roberto Rossellini com a Bergman e sobre ela, especificamente "Ingrid Bergman", episódio de "Siamo donne" (1952-53) - respeitadas as devidas distâncias, que aqui sou eu que faço questão de respeitar. Contudo, ressalvando embora o interesse do dispositivo há que reconhecer que Anabela Morreira não tem ainda a densidade pessoal que lhe permita transmitir mais do que uma superficial complexidade.       
        Assim, sem descair em nenhum momento do documentário, que não tenta, e muito bem, ficcionalizar além do que a introdução da actriz exige, João Canijo consegue fazer com ele também o documento sobre a sua actriz, que aceita mais uma vez expor-se num filme dele (e ainda bem), embora em termos ficcionais, mas sem revelar características próprias que permitam fazer passar algo de único e pessoal. O filme só ganha com a intromissão dessa intrusa, que sem tentar impor-se a si própria se torna num dos principais motivos de interesse "É o Amor" pela exposição do seu caso pessoal, atravessado de dúvidas, em contraste com a simplicidade de Sónia, mostrada mas também dita por ela própria. Levada a problematizar-se, Anabela Moreira problematiza-se tanto quanto pode, em especial no momento imediatamente anterior à festa de casamento, mas perde em termos de veracidade perante Sónia, que assim se torna o motivo de maior interesse do filme.
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          Formalmente este é um filme com apontamentos notáveis, pois a cãmara de João Canijo não guarde durante a maior parte do tempo distâncias em relação às suas personagens, que filma de muito perto e sem deixar espaço para mais nada - quebra mesmo a tendência para a profundidade de campo que por razões espaciais existia justificadamente nos interiores de "Sangue do Meu Sangue", e aqui é quase sempre negada. Remetidas a si próprias, ao que fazem e ao que dizem, as personagens aguentam muito bem a proximidade da câmara, tornando inteiramente justificada a opção do cineasta. E quando Anabela Moreira é filmada isoladamente e fala para a sua própria câmara estabelece no filme um outro registo, que perfeitamente se articula com o dominante, mesmo se sem conseguir fazê-lo funcionar em pleno por se limitar a uma experiência comum. Salvam-se apesar de tudo a ideia e a intenção.
      João Canijo é um cineasta apreciável, que nos seus filmes trabalha especialmente as personagens femininas, a que neste filme regressa de maneira inesperada pelo duplo registo, documental e subjectivo. Além de Anabela Moreira, as outras intérpretes, em especial Sónia Nunes, estão perfeitamente à altura - muito curioso o diálogo desta com o marido, pescador e por isso ausente durante a maior parte do filme, sobre quem trabalha mais, eles ou a geração anterior -, e o filme só abre para o plano geral ocasionalmente - nomeadamente no passeio de Anabela e Sónia, na cena do casamento e nos vinte minutos finais, para terminar sobre o regresso da traineira.  
                    Trailer: É o Amor de João Canijo
           Dito isto, há que acrescentar uma certa aspereza da montagem, que como que trabalha pouco um material em bruto, com a preocupação de preservar a sua autenticidade, conferindo a "É o Amor" um tom de certa imperfeição, ou inacabamento, que fica bem no seu registo documental. Em especial as cenas com personagens que aparecem uma vez adquirem uma veracidade que por momentos faz pensar em "Aquele Querido Mês de Agosto", de Miguel Gomes (2008), mas em menos preparado, menos sistemático e mais rude na sua espontaneidade, assim garantida e preservada por uma montagem não especialmente elaborada ou vistosa.
           Ao trabalhar sobre a fronteira entre o documentário e a ficção o cineasta não desilude e vai tão longe quanto pode ir. Penso mesmo que fez bem em arriscar e que se justifica continuar a depositar confiança e a alimentar expectativa relativamente ao seu trabalho futuro.

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