"João
Queiroz, pintura" é uma das quatro curtas-metragens de "4", de João
Botelho, ainda em finalização, sobre quatro grandes artistas portugueses
contemporâneos, e é por si mesmo, nos seus 25 minutos de duração, um
filme admirável.
Fiel a uma inspiração straubiana, que aqui converge com "Cézanne"
(1989) e "Une visite au Louvre" (2003), de Jean-Marie Straub e Daniéle
Huillet, o cineasta entrega-se a um exercício criativo, mais que a um
exercício de estilo, ao filmar a pessoa, as palavras e os quadros do
pintor, que parte de uma relação sensível com a natureza, com os
objectos, com a vida para a sua criação, e não apenas de conceitos, que
em vez de premissas, apesar de surgirem antes no filme são pontos de
chegada. Para captar a percepção que está nas próprias coisas, na sua
natureza sensível e perceptível, João Queiroz aconselha o contacto
táctil, sensorial, com o que vai pintar, para que essa sensação passe
para o que vai representar pictoricamente. "Pintar do natural não é
copiar o objectivo, é dar forma a sensações." (1). Sabendo embora que o
motivo fundamental não é, por isso mesmo, visível na representação
visual.
Além de ser, e de maneira deliberada, uma lição de pintura, este filme é
também uma lição de cinema, sobre o modo de filmar palavras e aquele
que as diz, gente viva, quadros, conceitos. Com uma música que culmina,
empolgante, em Wagner, o filme filma o rosto dos que dizem,
repetindo-as, as palavras das lições de pintura, filma o próprio pintor a
caminhar, silencioso, na Serra o Caramulo, filma as premissas dos
conceitos, das lições, filma a natureza e o contacto táctil com ela (uma
folha, verde), filma os quadros concluídos, parcial e dispersamente,
como é inevitável. Ao fazê-lo como o faz, dando todo o destaque às
palavras, ao contacto sensível, aos conceitos assim mediados, João
Botelho pratica uma poética do sensível que vem da pintura (Cézanne, que
precedeu o nascimento do cinema) e vem do próprio cinema
(Straub/Huillet, nomeadamente nos filmes acima mencionados).
Mas mostra também o pintor a pintar, a estabelecer o traço e a cor do
que vai preencher a tela, primitivamente em branco, com o que filma o
que é filmável do momento da criação, do acto de criação assim tornado
perceptível, visível e partilhável quanto o pode ser na duração duma
curta-metragem. Que eu saiba, ninguém no cinema português foi tão longe
nesta questão como Botelho aqui vai.
Como um sopro, passa por esta curta-metragem a partilha do sensível de
Jacques Rancière e a materialização do acto de criação como ninguém
(salvo Henri-Georges Clouzot em "Le mystère Picasso", 1956, e Victor
Erice em "O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro"/"El Sol del membrillo",
1992) jamais o filmou. Tal como é, este filme é perfeitamente
consistente com a obra do cineasta, nomeadamente com a sequência da
«Marcha fúnebre para o Rei Luiz Segundo da Baviera» do "Filme do
Desassossego", a sua última longa-metragem (2010) que com variantes e
precisão prolonga e comenta. Talvez "João Queiroz, pintura" seja mesmo a
obra-prima de João Botelho, de quem apenas não conheço os outros
documentários que tem feito nos últimos anos.
Notas
(1) Paul Cézanne em carta a Émile Bernard em 21/10/1904, citado em "Paul Cézanne", de Élie Faure - edição portuguesa «"Paul Cézanne" por Élie Faure, seguido de "O que ele me disse..." por Joachim Gasquet», Sistema Solar, Lisboa, 2012, com a especial curiosidade de ter sido do segundo que Jean-Marie Straub e Danièle Huillet partiram para os seus dois excelentes filmes "Cézanne" e "Une visite au Louvre", que terão influenciado João Botelho nesta sua curta-metra
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