“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Um autor americano

          Agora que estalou a polémica ao mais alto nível entre os "Cahiers du Cinéma" e a "Sight & Sound" sobre a questão do autor no cinema a pretexto de um bom cineasta recentemente desaparecido, o japonês Nagisa Oshima (ver o número de Junho 2013 da "Sight & Sound"), vem mesmo a propósito o mais recente filme do americano Terrence Malick, "A Essência do Amor"/"To the Wonder" (2012), que é mesmo utilizado por ambas as partes nessa contenda.
         O filme, apesar de incompreendido por muitos, é muito bom, e vai no sentido de um cinema de autor no sentido de ambos os contendores nesta polémica relevante. De facto, Terrence Malick não é um tipo qualquer, mas alguém que atravessou um longo silêncio entre o seu início no cinema e um retorno regular, o que é sempre uma questão a ter em conta (ver "Poética de Terrence Malick", 5 de Fevereiro de 2012, e "Começar de novo", 12 de Agosto de 2012). O que pode ter provocado a incompreensão de muitos na Europa é o facto de o cineasta, depois de "A Árvore da Vida"/"The Tree of Life" (2011), ter enveredado por um caminho aparentemente contrário ao cinema americano maioritário e desprovido do que era considerado como o seu caminho real no cinema.
                    
          Com um estilo em tudo semelhante a "A Árvore da Vida", incluindo o uso da subjectiva indirecta livre, Malick trabalha aqui contra os seus filmes anteriores, como é suposto acontecer com um verdadeiro autor no cinema, ao dar-nos um filme que, continuando a ser cinema de poesia no sentido de Pasolini e Deleuze, não é exaltante nem gratificante. Mas o seu estilo pessoal continua presente, mesmo no que ilude e elide, como seja os planos individualizados da natureza, de que nos chegam apenas imagens comuns e pacificadoras, mesmo se simplificado por uma montagem curta.
           Para me fazer entender, este é um filme contra os anteriores filmes do cineasta, em que em vez de tratar da regeneração da vida ele fala da extinção do amor, da dúvida e do vazio. Ao fazê-lo como o faz, Terrence Malick, sempre argumentista e realizador (portanto autor em sentido pleno), em vez de apontar para o recomeço aponta para o fim, para o termo inelutável de um amor, no que se diz basear-se na sua própria história pessoal. Ora todos estamos (mal) habituados a um cinema americano assertivo, afirmativo, com finais felizes, quando aqui o cineasta, um tanto à maneira do cinema europeu, aborda uma experiência que acabou mal... porque acabou.
                    
          Ao abordar uma experiência sem saída o cineasta ergue-se à altura de um autor no sentido francês que, se Stéphane Delorme me permite, admite que um cineasta tenha não só diferentes abordagens mas também diferentes estilos (ver por todos Jean-Luc Godard), do que ele nem sequer aqui pode ser acusado. Esse é mesmo o elemento mais irritante deste filme, manter-se fiel a um estilo, exacerbá-lo mesmo, para um tratamento narrativo diferente. Mas aí estão notoriamente ausentes não apenas os planos de pormenor da natureza, que estavam nos seus filmes iniciais, como está ausente, entre os quatro elementos, o fogo - mesmo a luz artificial surge sobre o vazio, num filme percorrido por interiores vazios e por crepúsculos.
          Ora, ao fazê-lo Terrence Malick é perfeitamente consistente com os seus filmes anteriores, com os quais acentua o contraste, já que as personagens de "A Essência do Amor" vivem uma inquietante dúvida, um inquietante vazio, numa via que diria bergmaniana embora tratada de maneira original. Um casal que se faz e se desfaz, um homem que regressa a um conhecimento antigo, uma mulher devolvida à solidão (sem respeito da cronologia do filme), um padre com dúvidas sobre a sua fé. Aqui não há fogo, nestas personagens não há luz regeneradora, o que, não sendo habitual no cliché que temos de Hollywood, é completamente aceitável e compreensível numa perspectiva de autor.
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               Malick surge-me, pois, neste seu último filme, como irritantemente praticante de um cinema de poesia, próximo por vezes do vídeo-clip no pior sentido, mas como um autor, e um grande autor, no sentido dos "Cahiers" como no sentido da "Sight & Sound". É que o estilo no cinema tem a ver com a mise en scène, como no seu tempo defenderam a Présence du Cinéma e o seu chefe de fila, Michel Mourlet, e como Serge Daney muito bem notou a mise en scène é uma questão de moral, o que nos permite não gostar do estilo exacerbadamente poético deste filme aceitando embora, sem reservas, o seu carácter autoral. E será tanto mais fácil compreendê-lo quanto se pensar que a mise en scène passou a ser associada ao conceito de autor sobretudo a partir da nouvelle vague francesa e dos cinemas novos dos anos 60, que foram a principal semente lançada pela política dos autores e tornaram a mise en scéne parte consciente do próprio olhar e da sua moral em cada autor.
              Sendo o cinema um fenómeno artístico e não apenas comercial, nem sequer crítico, embora à crítica naturalmente sujeito, as expectativas em relação ao futuro de um cineasta não ingénuo nem inocente, como Terrence Malick é, mantêm-se intactas. De certa maneira, só agora ele está a começar, ao encontrar resistências no material narrativo que tem que explicitar a nível formal. O resto são injustificados preconceitos numa arte que ainda agora está a começar, muito embora uma polémica como a actual seja muito oportuna e mesmo saudável, em especial num tempo em que, como hoje sucede, os conceitos de autor, de mise en scène e de estilo deixaram de estar na moda, mesmo entre a crítica de cinema.

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