Agora que estalou a polémica ao mais alto nível entre os "Cahiers du Cinéma" e a "Sight & Sound" sobre a questão do autor no cinema a pretexto de um bom cineasta recentemente desaparecido, o japonês Nagisa Oshima (ver o número de Junho 2013 da "Sight & Sound"),
vem mesmo a propósito o mais recente filme do americano Terrence
Malick, "A Essência do Amor"/"To the Wonder" (2012), que é mesmo
utilizado por ambas as partes nessa contenda.
O filme, apesar de incompreendido por muitos, é muito bom, e vai no sentido de um cinema de autor no sentido de ambos os contendores nesta polémica relevante. De
facto, Terrence Malick não é um tipo qualquer, mas alguém que
atravessou um longo silêncio entre o seu início no cinema e um retorno
regular, o que é sempre uma questão a ter em conta (ver "Poética de
Terrence Malick", 5 de Fevereiro de 2012, e "Começar de novo", 12 de
Agosto de 2012). O que pode ter provocado a incompreensão de muitos na
Europa é o facto de o cineasta, depois de "A Árvore da Vida"/"The Tree
of Life" (2011), ter enveredado por um caminho aparentemente contrário
ao cinema americano maioritário e desprovido do que era considerado como
o seu caminho real no cinema.
Com um estilo em tudo semelhante a "A Árvore da Vida", incluindo o uso da subjectiva indirecta livre,
Malick trabalha aqui contra os seus filmes anteriores, como é suposto
acontecer com um verdadeiro autor no cinema, ao dar-nos um filme que,
continuando a ser cinema de poesia no sentido de Pasolini e
Deleuze, não é exaltante nem gratificante. Mas o seu estilo pessoal
continua presente, mesmo no que ilude e elide, como seja os planos
individualizados da natureza, de que nos chegam apenas imagens comuns e
pacificadoras, mesmo se simplificado por uma montagem curta.
Para me fazer entender, este é um filme contra os anteriores filmes do
cineasta, em que em vez de tratar da regeneração da vida ele fala da
extinção do amor, da dúvida e do vazio. Ao fazê-lo como o faz, Terrence
Malick, sempre argumentista e realizador (portanto autor em
sentido pleno), em vez de apontar para o recomeço aponta para o fim,
para o termo inelutável de um amor, no que se diz basear-se na sua
própria história pessoal. Ora todos estamos (mal) habituados a um cinema
americano assertivo, afirmativo, com finais felizes, quando aqui o
cineasta, um tanto à maneira do cinema europeu, aborda uma experiência
que acabou mal... porque acabou.
Ao abordar uma experiência sem saída o cineasta ergue-se à altura de um autor
no sentido francês que, se Stéphane Delorme me permite, admite que um
cineasta tenha não só diferentes abordagens mas também diferentes
estilos (ver por todos Jean-Luc Godard), do que ele nem sequer aqui pode
ser acusado. Esse é mesmo o elemento mais irritante deste filme,
manter-se fiel a um estilo, exacerbá-lo mesmo, para um tratamento
narrativo diferente. Mas aí estão notoriamente ausentes não apenas os
planos de pormenor da natureza, que estavam nos seus filmes iniciais,
como está ausente, entre os quatro elementos, o fogo - mesmo a luz artificial surge sobre o vazio, num filme percorrido por interiores vazios e por crepúsculos.
Ora, ao fazê-lo Terrence Malick é perfeitamente consistente com
os seus filmes anteriores, com os quais acentua o contraste, já que as
personagens de "A Essência do Amor" vivem uma inquietante dúvida, um
inquietante vazio, numa via que diria bergmaniana embora tratada de
maneira original. Um casal que se faz e se desfaz, um homem que regressa
a um conhecimento antigo, uma mulher devolvida à solidão (sem respeito da cronologia do filme), um padre com dúvidas sobre a sua fé. Aqui não há fogo, nestas personagens não há luz regeneradora, o que, não sendo habitual no cliché que temos de Hollywood, é completamente aceitável e compreensível numa perspectiva de autor.
Malick surge-me, pois, neste seu último filme, como irritantemente praticante de um cinema de poesia, próximo por vezes do vídeo-clip no pior sentido, mas como um autor, e um grande autor, no sentido dos "Cahiers" como no sentido da "Sight & Sound". É que o estilo no cinema tem a ver com a mise en scène, como no seu tempo defenderam a Présence du Cinéma e o seu chefe de fila, Michel Mourlet, e como Serge Daney muito bem notou a mise en scène
é uma questão de moral, o que nos permite não gostar do estilo
exacerbadamente poético deste filme aceitando embora, sem reservas, o
seu carácter autoral. E será tanto mais fácil compreendê-lo quanto se
pensar que a mise en scène passou a ser associada ao conceito de autor sobretudo a partir da nouvelle vague francesa e dos cinemas novos dos anos 60, que foram a principal semente lançada pela política dos autores e tornaram a mise en scéne parte consciente do próprio olhar e da sua moral em cada autor.
Sendo o cinema um fenómeno artístico e não apenas comercial, nem sequer
crítico, embora à crítica naturalmente sujeito, as expectativas em
relação ao futuro de um cineasta não ingénuo nem inocente, como Terrence
Malick é, mantêm-se intactas. De certa maneira, só agora ele está a
começar, ao encontrar resistências no material narrativo que tem que
explicitar a nível formal. O resto são injustificados preconceitos numa
arte que ainda agora está a começar, muito embora uma polémica como a
actual seja muito oportuna e mesmo saudável, em especial num tempo em
que, como hoje sucede, os conceitos de autor, de mise en scène e de estilo deixaram de estar na moda, mesmo entre a crítica de cinema.
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