Com uma vasta obra atrás de si, Roman Polanski afoitou-se a realizar "Vénus de Vison"/"La Vénus à la fourrure" (2013), com argumento seu e de David Ives baseado na peça de teatro deste "Venus in Fur", por sua vez baseada no clássico do Século XIX de Leopold von Sacher-Masoch.
Começo por dizer que este filme faz todo o sentido na obra de Polanski, pois toda ela se baseia em jogos de poder, como os seus filmes anteriores "O Escritor Fantasma"/"The Ghost Writer" (2010) e "O Deus da Carnificina"/Carnage" (2011) exemplarmente mostram e este filme confirma e demonstra, embora a questão do poder atravesse toda a sua obra desde o início - ainda há pouco tempo revi "Por Favor Não Me Morda o Pescoço"/"Pardon me, But Your Teeth are in My Neck"/"Dance of the Vampires" (1967), que definitivamente o impôs no cinema depois da sua saída da Polónia e antes da sua ida para os Estados Unidos (onde teve a vida atribulada que se conhece, que o fez regressar à Europa), um filme que mantém toda a sua graça e frescura satírica original, e em que essa era já, compreensivelmente, a questão.
Integralmente passado num teatro, em que classicamente entramos no início e do qual saímos no final, "Vénus de Vison" decorre exclusivamente entre um autor/encenador/actor, Thomas/Mathieu Amalric, e uma candidata a actriz, Vanda/Emmannuelle Seigner, que ensaiam a peça, o que faz com que funcione como prova de actores de que os dois se saem na perfeição. É que o trabalho dos actores atinge, na criação daquelas personagens de teatro, aquele ponto de desdobramento essencial entre o actor e a personagem de que Fernando Pessoa escreveu em Autopsicografia: "Finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente", o que torna o filme uma obra siderante centrada no jogo da representação teatral duplicado pela representação cinematográfica.
Chegando ao pulsional e ao fetichismo, Roman Polanski atinge aqui o pleno domínio e a plena mestria que a sua obra anterior preludiava e anunciava, com um uso preciso das palavras ditas com absoluto a propósito e em todas as nuances que um ensaio convoca. Assim ele volta a mostrar a que ponto o seu nome é indissociável do melhor do cinema dos últimos 50 anos, contra todas as adversidades e todos os reveses da fortuna.
Quem conhecer bem a obra do realizador reconhecerá em "Vénus de Vison" um grande cineasta no melhor do seu talento, num concentrado prodigioso: tudo decorre no espaço de um palco, com saídas para a plateia, vazia e tornada lugar de passagem, ligações de telemóvel com o exterior - uma outra mulher, um outro homem (ou mulher, ou ninguém) -, uma saída para os bastidores, num filme em que todos os espaços duma sala de teatro, assim como todos os aspectos da encenação teatral, são convocados. Aliás, esta é uma obra cinematográfica a toda a prova, de humanidade, de ironia e de talento, quer do realizador, quer dos actores, do director de fotografia Pawel Edelman e (sobretudo) do compositor Alexandre Desplat, um filme que se define e joga entre simulação e dissimulação, com um fabuloso genérico de fim com as diferentes representações de Vénus na pintura presentes nos grandes museus de todo o mundo, prova final e definida de homenagem à mulher.
Claro que Roman Polanski não é Thomas, como Mathieu Amalric não o é, tal como Emmanuelle Seigner não é Vanda, mas na distância e na transição entre o ser e o representar das personagens na criação da peça dentro do filme, entre o verdadeiro e o falso, o falso e o verdadeiro, entre o poder próprio e a consciência do poder do outro que se jogam entre o autor/encenador/actor e a actriz reside um dos méritos maiores deste filme fascinante e imprescindível, em que no essencial confronto homem-mulher o cineasta, ao erguer-se à dimensão do mito, mostra estar inteiramente à altura do melhor de Luis Buñuel ou Ingmar Bergman.
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