O mais recente filme de Asghar Farhadi, "O Passado"/"Le passé" (2013), rodado em França onde a sua narrativa decorre, vem confirmar plenamente as qualidades reveladas em "Uma Separação"/"Jodaeiye Nader az Simin", 2011 (ver "Uma questão familiar", 5 de Julho de 2012). De novo também autor do argumento, o cineasta volta a dar muito boa conta de si a esse nível, com uma narrativa bem construída, que é o que em primeiro lugar para este seu filme chama a atenção.
Mais uma vez está em causa o que poderei voltar a chamar "uma questão familiar", só que desta vez tudo gira em volta de uma mulher, Marie Brisson/Bérénice Bejo, que se quer divorciar do anterior marido, Ahmad/Ali Mosaffa, para poder dispor de si - eventualmente casar com o seu namorado actual, o pai do filho que ela traz consigo, Samir/Tahar Rahim. Cada um deles tem filhos de anteriores casamentos, mas Samir tem ainda viva a anterior mulher, Céline/Aleksandra Klebanska, que devido a uma tentativa de suicídio se encontra nos hospital, ligada à vida por máquinas.
Vai ser a personagem de Ahmad que, chegando para o divórcio, nos vai conduzir ao interior da teia de relações estabelecida, ele que é alheio ao que no presente decorre já que nem sequer um filho de Marie tem, vendo-se obrigado a lidar com as filhas do primeiro casamento dela e com o filho de Samir. Não vou contar a história, apenas acrescento que se Ahmad é, naquelas circunstâncias, o revelador, de Céline vai ser exigida no final a contraprova: do que se passou, se sobreviver, do que se virá a passar em qualquer caso.
A construção do mistério do filme, com os seus diferentes segredos, é muto bem feita em termos fílmicos e muito bem defendida pelos actores. Há sobretudo uma sequência, a que começa com o ponto de vista se Samir enquanto muda uma lâmpada, que, filmada em continuidade, lança os segredos manifestos e ocultos da narrativa em termos cinematograficamente perfeitos. Essa sequência, que implica a mudança do ponto de vista do filme de Ahmad para Samir, segue-se à revelação por Lucie/Pauline Burlet, a filha mais velha de Marie, a Ahmad do papel que anteriormente teve no desenrolar dos acontecimentos, e decorre na noite em que ela não regressa a casa e é desesperadamente procurada.
Fosse outro o meio e aquelas questões provavelmente não se colocariam da mesma maneira, mas em "O Passado" estão em causa, para além da origem de cada personagem, um homem que regressa para se divorciar e entende em cada mulher a mesma mulher e um outro homem que não sabe decidir-se entre duas mulheres, tanto mais quanto outras interferem no seu juízo. Os pequenos passos com que o filme avança vão precisamente no sentido de que ali, entre masculino e feminino alguma coisa de mais profundo se joga entre a verdade e a mentira à volta de uma mancha numa peça de roupa.
Desse ponto de vista o filme de Asghar Farhadi torna-se mesmo transparente, com o envolvimento de uma outra mulher, Naïma/Sabrina Ouazani, e o estabelecimento da dúvida no espírito de Samir, uma dúvida que só Céline poderá esclarecer se... Jogando muito bem com o lugar-comum e com a personagem de Ahmad como intermediário, o cineasta faz descascar cada camada de verdade para chegar a uma dúvida, não a uma conclusão, que deixa em suspenso, dependente da reacção ao sensível: o perfume.
Não é por acaso que, logo desde a chegada de Ahmad um vidro impede-o de comunicar com Marie, não obstante o que eles se entendem, e é a este nível de subtileza cinematográfica, entre o visível e o sensível, em que a transparência, aparentemente espessa e opaca, não se torna obstáculo, que este filme muito dialogado, que se joga no final entre a vida e a morte, deve ser entendido. Não há aqui mistérios inexplicáveis. O que é preciso é perceber a que nível, para além ou aquém das palavras, aquela teia de relações se processa e define.
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