Foi preciso esperar pelo final do ano para aparecerem os melhores filmes. É especialmente o caso do último de Joel e Ethan Coen, "A Propósito de Llewyn Davis"/"Inside Llewyn Davis" (2013), um filme surpreendente em que os dois irmãos regressam ao seu melhor.
Digo surpreendente porque, a meu ver, nada a não ser o tom faria prever este filme na obra deles, assinalada por filmes notáveis que vão contra uma corrente de geral conformismo prevalecente no cinema americano. Mais uma vez o caso ficcional deles apresenta-se neste filme com um loser, Llewyn Davis/Oscar Isaac, que no início dos anos 60, entre New York e Chicago, tenta impor a sua música folk a solo em Greenwich Village.
Funcionando no seu tom depressivo como um anúncio da chegada da geração Bob Dylan, este último filme dos Coen tem ironia, elegância, desencanto na abordagem da sua personagem, tornada um épico melancólico e sombrio do quotidiano cinza-negro num filme que se desenvolve em perda e se resolve contra sentimentos exaltantes. Nada mais real do que a vida real quando abordada como um sonho, um pesadelo, filmada de perto e de longe de modo a dar a proximidade, o quadro e a distância justa.
Equacionadas as coisas nestes termos, "A Propósito de Llewyn Davis" surpreende pela perfeição formal com que aborda uma personagem secundária, aparentementemente sem futuro, construindo-se sobre ela e a partir dela como um tipo de musical que raramente aparece no cinema americano: o que está dissociado da Broadway. De peripécias da sua vida privada, com surpresas, em actuações espontâneas, geralmente rejeitadas, com uma atribulada viagem de automóvel pelo caminho, Llewyn é uma imagem terrena e humana de um mundo em mudança que, com critérios do passado, escolhe aqueles que vai acolher e lançar.
Partindo da vida, das músicas e canções de Dave Van Ronk (1936-2002), que publicou um album intitulado "Inside Dave Van Ronk", e servindo-se de novas composições de T-Bone Burnett (que já trabalhara com eles em "Irmão, Onde Estás?"/"Oh Brother, Where Art Thou?", 2000) e Marcus Mumford, os Coen coreografam a época e o meio, centrado em Greenwich Village, como se fosse um verdadeiro musical, imprimindo ao filme uma dinâmica repetitiva e circular (de percurso, de personagens, de situações) em que para o protagonista, como num sonho, não há saídas e o aparente despertar se dá mesmo, em repetição, num beco: sovado e sem saída. Com fotografia assombrosa de Bruno Delbonnel, que anteriormente trabalhou com Alexander Sokurov ("Fausto/"Faust", 2011) e Tim Burton ("Sombras da Escuridão"/"Dark Shadows", 2012), e montagem dos próprios cineastas, este é um dos melhores filmes dos Coen, sem qualquer concessão ao gosto fácil ou ao espectáculo: o espectáculo é o próprio filme.
Irrepreensível como filme de época, "A Propósito de Llewyn Davis" tem actores justos e precisos em papéis todos eles secundários, pois o próprio filme é sobre gente secundária num meio secundário, então em transformação. Sem precisarem de outras referências que a própria América, especialmente as referências musicais e mesmo cinematográficas, sem contemporizar os irmãos Coen continuam a olhar para ela impiedosamente mas com a compreensão e o imenso carinho que os americanos lhe dedicam.
Construindo o seu fascínio sobre o seu mistério baseado em vidas comuns, banais, este é um filme mais que perfeito, feito para nos surpreender com boas razões e que por elas nos fascina e prende. E Oscar Isaac é uma bela surpresa, ele também, como actor e como cantor.
Chamem-lhe "revivalismo" ou o que quiserem, mas pelos filmes de Joel e Ethan Coen, cuja obra é um notável work in progress, por vezes cruel e corrosivo, nos últimos 30 anos, passa uma parte muito importante do melhor do cinema actual, pelo que o Grande Prémio do Festival de Cannes deste ano sabe a pouco (sobre os Coen ver "Encontro fatal", 20 de Janeiro de 2012, e "À maneira antiga", 4 de Março de 2012).
Chamem-lhe "revivalismo" ou o que quiserem, mas pelos filmes de Joel e Ethan Coen, cuja obra é um notável work in progress, por vezes cruel e corrosivo, nos últimos 30 anos, passa uma parte muito importante do melhor do cinema actual, pelo que o Grande Prémio do Festival de Cannes deste ano sabe a pouco (sobre os Coen ver "Encontro fatal", 20 de Janeiro de 2012, e "À maneira antiga", 4 de Março de 2012).
Sem comentários:
Enviar um comentário