“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Na primeira pessoa

      Credenciado técnico de som, Joaquim Pinto realizou e produziu em Portugal três boas longas-metragens de ficção entre 1988 e 1992 ("Uma Pedro no Bolso", "Onde Bate o Sol" e "Das Tripas Coração") e partiu depois para o Brasil, onde realizou e produziu diversos documentários com Nuno Leonel. Dele nos chega agora um documentário de longa-metragem, "E Agora? Lembra-me" (2013), filme de uma outra ambição e de um outro alcance porque nele, na primeira pessoa do singular e filmando-se a si próprio, o cineasta conta a sua experiência de convívio com a Hepatite C e o HIV.
      Ora este é um filme que merece a nossa melhor atenção por ser construído no presente sobre os fragmentos da memória do cineasta, por ter uma utilização superior da linguagem cinematográfica e por ter como objecto uma experiência de sofrimento humano a que não devemos ser indiferentes, tanto mais quanto tem na sua origem o convívio com um vírus largamente espalhado na actualidade e muito perigoso.  
                     
   Com uma duração muito longa, "E Agora? Lembra-me" assume abertamente um registo diarístico, em que Joaquim Pinto vai desdobrando a sua memória de toda a sua vida, largamente identificada com o próprio cinema, com particular atenção aos tempos em que passou a conviver com aquele vírus e com os sucessivos tratamentos médicos a que ele o obrigou. E a apresentação da sua relação com Nuno Leonel vem esclarecer que entre os dois existiu e existe uma história de amor.
      Mas ao apresentar a sua própria vida como integrando uma história de amor o cineasta está a ser completamente sincero consigo próprio e com os espectadores, o que, completado pela sua (e de Nuno Leonel) reflexão filosófica, pelos frequentes grandes-planos de rosto seus e planos de pormenor de pequenos animais, enriquece sobremaneira o filme. Além disso, no seu recolhimento ao interior do país confronta-nos com a desertificação local deste, e ao alongar o seu olhar para a pré-história, para o cosmos e para a religião elabora uma cosmovisão pessoal, o que dá uma outra dimensão à primeira pessoa do singular utilizada.
                      E agora lembra me
     De caminho, Joaquim Pinto evoca grandes nomes da história do cinema, com muitos dos quais trabalhou e que conheceu, de que me permito destacar aqui Robert Kramer e João César Monteiro, o que torna o seu filme relevante também como convocação da história recente do próprio cinema. Além disso, conta a história do HIV, ainda hoje mal conhecida, o que torna o filme inteiramente exemplar.
       A mim o que me toca mais é, contudo, o assumir da primeira pessoa do singular por Joaquim Pinto, com os seus momentos mais confusos e mais emotivos, mesmo quando olha em volta de si, o que confere a este "E Agora? Lembra-me" o cunho pessoal de testemunho vivido. Ele continua a ser, agora mais do que nunca, um nome essencial do cinema das última 4 décadas, o que justifica inteiramente a retrospectiva que a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema  lhe dedicou no início deste mês de Setembro.

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