“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 7 de setembro de 2014

Um ar de família

   "Americano" (2011) é a primeira longa-metragem realizada por Mathieu Demy, também argumentista, produtor (com a mãe, Agnès Varda, e a irmã, Rosalie Varda, como co-produtoras) e actor principal. A originalidade e o encanto do filme, com realização depurada, decorre de ele ser uma homenagem ao pai do cineasta, Jacques Demy (ver "Era Nantes e amanhecia", de 30 de Abril de 3013), concretamente aos seus filmes "Lola" (1960) e "Model Shop" (1968), este feito em Los Angeles.
                    
     Depois de saber da morte da mãe em Los Angeles, Martin/Mathieu Demy empreende a viagem de Paris para a Califórnia, onde é recebido por Linda/Geraldine Chaplin, que a contragosto o reencaminha para uma Lola/Salma Hayek, que terá sido amiga da sua mãe e posteriormente recambiada para o México. Entre artista de cabaret e prostituta, Lola não faz a vida fácil ao protagonista mas talvez o leve a compreender o amor de mãe, de que ele duvidava em relação à sua (surgem imagens de menor dimensão da infância de Martin com a sua mãe nova/Sabine Mamou, que são excertos da infância de Mathieu incluídos por Agnès Varda em "Documenteur", 1981, que cria esta personagem).  
                     Divulgação/The Grosby Group
     No enrolar e desenrolar de uma história centrada no passado, no presente Martin descobre os outros e descobre-se a si próprio num mundo que lhe é estranho, a que é exterior. E em cada gesto de uma, aliás talvez falsa, Lola, nós recordamos Anouk Aimé como Lola, ela também entre artista de cabaret e prostituta. Na sua própria incerteza, os diálogos entre Martin e Lola são luminosos - Salma Hayek, que foi Frida Kahlo em "Frida", de Julie Taymor (2002), está prodigiosa e o próprio Mathieu Demy mostra presença e dotes especiais como actor.
                    
    Com actores de excepção (Jean-Pierre Mocky faz o pai, Chiara Mastroianni a mulher, Claire, de Martin, Carlos Bardem interpreta Luis, o dono do Americano, o cabaret em que Lola trabalha), Mathieu Demy consegue situar o seu filme fora do espaço e do tempo, num ponto em que confluem toda a memória do cinema e a sua própria memória do seu pai, muito justamente convocado em forma de homenagem que mais ninguém, a não ser o próprio filho conseguiria construir sob a forma de alusão sem que passe por homenagem.
    Destas pequenas coisas, pessoais, inteligentes e sentidas eu gosto sempre muito. Tanto mais quanto, afastada a reverência e para a afastar, o realizador salpica o seu filme de traços de humor e de auto-irrisão, que juntamente com a sua arte de filmar as mulheres lhe conferem um afectuoso ar de família.

Sem comentários:

Enviar um comentário