“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Duplicações

     "Saint Laurent" de Bertrand Bonello (2014) é um filme que me interessa por causa do seu tema, o famoso costureiro Yves Sain Laurent (1936-2008), e por causa do seu realizador, em cuja obra surge como perfeitamente consistente com o anterior "Apollonide - Memórias de um Bordel"/"Apollonide" (ver "As cativas", de 23 de Julho de 2012).
                    
      De facto, no seu novo filme, dividido claramente em duas partes, antes e depois de 1974, o cineasta começa por regressar a um cinema do corpo, sem a concentração espacial do filme anterior mas com características suficientes que permitem a sua identificação. Claro que aqui está em causa primacialmente a vida, privada e pública, do próprio Yves Saint Laurent/Gaspard Ulliel, que sofre um incremento com a chegada de Jacques de Bascher/Louis Garrel, mas todo o filme se dedica à criação de alta-costura e, portanto, também a outros corpos.
      Sem justificação aparente, as cenas de discussão sobre as linhas de modelos e a empresa vêm recordar o lugar que Saint Laurent ocupou no sistema económico, enquanto a recapitulação ano a ano entre 1967 e 1974 permite um resumo de época que nem sequer é difícil de fazer, incluindo as referências artísticas pessoais do protagonista, de Piet Mondrian a Andy Warhol passando por Marcel Proust.
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     Nessa primeira parte o jogo com os espelhos, sempre justificado e bem resolvido, implica a duplicação e o narcisismo de uma personagem bem defendida em termos históricos e de interpretação. A segunda parte do filme, depois de 1974, é mais forçada, embora ela também bem resolvida pela intromissão de um Yves envelhecido/Helmut Berger, em 1989 presa dos seus fantasmas e que, numa outra duplicação, desdobrando-se no tempo comenta o seu próprio passado e a sua carreira.
     A cena da segunda parte em que duas modelos comentam Saint Laurent, fora de campo, durante uma sessão de fotografia em exteriores sintetiza de forma feliz uma reflexão sobre o corpo e o modo de o entender, mostrando mesmo na reciprocidade do olhar que o filme é sobretudo sobre o olhar. Com grande aprumo e acerto, em "Saint Laurent" Bertrand Bonello, de novo responsável pelo argumento, desta feita com Thomas Bidegain, volta a dar muito boa conta de si e do seu trabalho, com inventiva cinematográfica e narrativa, mostrando que é um dos nomes com quem se deve contar no actual cinema francês.               
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      Movendo-se neste filme num terreno mais reconhecido, ele consegue não só não estragar o seu tema como fazer uma obra limpa e atraente, sem cedências e com boas soluções visuais, narrativas e também musicais. E está lá tudo o que interessa, do olhar sobre os corpos das mulheres e dos homens ao olhar delas e deles sobre os corpos uns dos outros - e aqui o que mais interessa é o olhar do próprio Saint Laurent visto pelo olhar, cúmplice mas irreverente e cáustico, e por isso justo, do cineasta, que não se coíbe de jogar com a lenda e os seus escândalos nem de mostrar os bastidores da moda, bem como modelos e manequins sempre que justificado, sobretudo no final.
       Com bem vistas referências cinéfilas a preto e branco, "Saint Laurent" destaca-se ainda pela presença de Léa Seydoux como Loulou de la Falaise, Valeria Bruni Tedeschi como Mme Duzer e especialmente Dominique Sanda como Lucienne Saint Laurent.

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