O inglês Mike Leigh tem sido relacionado com a tradição realista do cinema inglês, de que o nome mais próximo no tempo é Ken Loach. É por isso com alguma surpresa que o vemos abordar o filme de época em "Mr. Turner" (2014), à semelhança, aliás, do que já fizera em "Topsy-Turvy" (1999). Sem ser por isso total, a surpresa é mesmo assim grande e o espanto maior.
Joseph Mallord William Turner (1775-1851) é, contudo, o desafio de uma vida para o cineasta, que ao ocupar-se dos últimos anos da sua vida dele dá uma imagem realista, é certo, mas que, com a implicação da sua criação pictórica, obviamente excede o mero realismo. De facto, Mike Leigh não poupa em mordacidade no tratamento de uma personalidade de referência da cultura e da arte do seu país, mas ao fazê-lo procura e consegue captar o pequeno excesso do pintor que justifica e permite compreender o seu génio pessoal.
Com o contributo decisivo do actor Timothy Spall, "Mr. Turner" constitui-se como um filme decisivo sobre a pintura, ao nível do que antes fizeram Vincente Minnelli ("A Vida Apaixonada de Van Gogh"/"Lust for Life", 1956), Jacques Rivette ("A Bela Impertinente"/"La belle noiseuse", 1991) e Maurice Pialat (Van Gogh", 1991). Há neste filme um tratamento do protagonista no seu lado rude, quase grotesco, que capta muito bem a pulsão criadora que no seu caso acima de tudo interessa.
Dessa pulsão é indissociável a vida do pintor, pelo que de perto a acompanhamos: durante a primeira hora ainda em vida do seu pai, William Turner/Paul Jesson, até à morte deste; na segunda hora desde a sua visita à jovem prostituta até ao seu primeiro contacto com o daguerreótipo; no final nos últimos dias da sua vida. Por si mesmo este percurso implica e explica, na interpretação notável de Timothy Spall, a pulsão criadora de Turner, que os episódios mais conhecidos da sua vida - nomeadamente a sua disputa com John Constable/James Fleet, o fazer-se amarrar ao mastro de um navio e a discussão com John Ruskin/Joshua McGuire - completam decisivamente.
Claro que tudo passa de forma delicada e soberba pelas mulheres, em especial Sarah Danby/Ruth Sheen e Sophia Booth/Marion Bailey, de forma a que o sexo, entre a morte do pai e a do filho, preceda e antecipe a morte de J. M. W. Turner, antes da qual uma criação feroz, aparentemente impulsiva e compulsiva, decorrera. Com recurso aos quadros originais e à simulação da sua criação, uma muito feliz e alusiva fotografia de Dick Pope e a música de Gary Yershon sempre justa, Mike Leigh vai tão longe neste seu "Mr. Turner" quanto a personagem exigia, tornando-o mais do que um filme de época e um filme sobre um pintor e a pintura, uma obra sobre a crítica de uma época e de uma arte feita numa arte posterior, que proporciona toda a proximidade e toda a distância exigíveis.
"O Sol é Deus" são as últimas palavras de J. M. W. Turner, pintor romântico da luz que antecipou os impressionistas, um artista culto e desenvolto, sempre à altura quando atacado e implacável quando passava ele próprio ao ataque, presa do fogo interior que o animava e lhe permitiu descobrir os seus motivos (o mar, o naufrágio, o poente) e inventar o seu estilo pessoal e inconfundível. A sobriedade inteiramente controlada da mise en scène de Mike Leigh só faz bem ao seu tema e ao respeito devido ao seu protagonista e, consequentemente, beneficia o filme, que será em especial apreciado pelos conhecedores e admiradores da arte de Turner, entre os quais me conto.
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