“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Assombradas, as sombras

    Assombrado no tempo é como Ventura nos aparece em "Cavalo Dinheiro", o mais recente filme de Pedro Costa (2014). Conhecido de filmes anteriores, ele encontra a sua origem remota em Leão/Isaach De Bankolé de "Casa de Lava" (1994), o filme que, ainda antes da "trilogia das Fontainhas", levou pela primeira vez o cineasta ao contacto com os cabo-verdeanos. Agora doente dos nervos, Ventura encontra-se hospitalizado, e é pela sua identificação perante o médico, logo a seguir às fotografias de Jacob Riis (1849-1914) que estabelecem a linha de rumo (ou o fio de prumo) para o que se vai seguir, que o filme se inicia.
   É mesmo neste filme que, depois das curtas-metragens "The Rabbit Hunters" e "Tarrafal" (2007), se percebe melhor a sempre falada influência de Jacques Tourneur nos filmes do cineasta, pois é um assombrado, espectral Ventura que recorda o seu passado e faz Vitalina recordar o dela. Ele é mesmo uma personagem tíípica dos filmes de Pedro Costa, alguém que vive à margem, esquecido pela liberdade e pela democracia, presa da sua miséria e do seu abandono, entregue às suas memórias que por vezes o levam a situar-se em 1974-75.
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    A escolha de personagens fora dos circuitos habituais no cinema e na televisão permite ao cineasta mais uma vez deambular com elas e a partir delas, desta feita não apenas pelos espaços físicos presentes mas também pelos espaços mentais - e é justamente isso que faz com que "Cavalo Dinheiro" seja o filme de Pedro Costa que mais directamente mostra a influência de António Reis.                 
    Os diálogos, nomeadamente com Vitalina, tornam-se monólogos cofessionais que algumas obsessões atravessam - ela lê os documentos que contam a história da sua vida e os percursos de Ventura desdobram-se por espaços labirínticos em que ele emerge do escuro, das sombras, para uma luz que o assombra mais. Tudo se esclarece melhor com a canção que fala de "contratado", "explorado", "enganado", e então é todo o percurso dele, deles que se ilumina.
                    
     Com um estilo pouco atraente no imediato, pois não trabalha uma beleza luminosa, directa, este é um filme de sombras - de sombras que emergem do negro - que a iluminação precisa entre-mostra na sua angustiada caminhada pelo vazio do presente e do passado. Até ao momento em que, no elevador do hospital, Ventura se desdobra num diálogo imaginário com um soldado do 25 de Abril, em que as promessas do passado se confrontam com as realidades do presente até ao paradoxo temporal - um excerto desta sequência integrara já "Sweet Exorcism", o segmento de Pedro Costa para o filme "Centro Histórico" (2012) - ver "Um filme histórico", de 15 de Março de 2014.              
     O que torna este "Cavalo Dinheiro" um filme muito importante é o facto de o realizador se manter apegado a personagens marginais enquanto estas percorrem os espaços em que explicam terem sido abandonadas (impressionante a conversa de Ventura a um telefone abandonado num espaço há muito desactivado) ou quando elas se entregam ao sonho, ao devaneio da memória imprecisa mas sempre justa na sua própria imprecisão. E ao falarem um com o outro, ela com memória de um Joaquim, ele alimentando ainda a esperança de uma Zulmira, a partir de um espeço-tempo imaginário Vitalina e Ventura estão a falar connosco e estão a falar também de nós - mesmo quando convocam a memória da violência e do abandono.
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    Enquanto estão fora do tempo, perdidas no tempo e no que dele recordam, as personagens deste filme vivem também assombradas por alguma coisa que, não mostrada, as excede e delas faz seus títeres, como que espectrais - a doença de Ventura, que lhe faz tremerem as mãos e vacilar a cabeça, o abandono de todos. Como zombies, todos cumprem um destino que não escolheram em obediência a forças estranhas que os escolheram a eles. E é no excesso de abandono, de solidão, de exasperada impotência que as personagens deste filme, estáticas, se movem e nos comovem com a força, o poder do seu ser-sombras - as cicatrizes na cabeça de Ventura e as suas mil mortes.            
     No final, depois de ter dado a sopa a um companheiro de infortúnio a quem diz "ter tido alta", Ventura sai para a noite enquanto o médico, enquadrado de cima, da porta do hospital o vê afastar-se. Como numa atitude de esperança, mas também numa promessa de espera no caso de regresso.     
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   Com uma excelente composição visual em termos espaciais, temporais e de contraste luz/sombras, como é costume nos filmes de Pedro Costa, convocando constantemente um fora de campo que, como espectadores, nos envolve, "Cavalo Dinheiro" integra alguns ruídos cavos e sobretudo a música, actual e clássica (no final), que interrompe os silêncios, os comenta e esclarece. 
    Como Ventura, Vitalina e os outros, estamos todos tão sós. O que nos distingue deles é alimentarmo-nos de satisfações ligeiras e efémeras, ilusões que eles não têm. (Compreensível embora, a comparação com o João de Deus de João César Monteiro, adiantada por Vasco Câmara no Ípsilon do Público da passada sexta-feira, surge-me como apressada e insuficiente, mesmo redutora, pois Ventura transporta consigo outras forças, outro passado, e sem transfiguração é movido pelo que o excede.) E, já agora, não tomemos este filme admirável como mero "divertimento" que ele, na sua exigente proposta artística, não é nem quer ser (sobre Pedro Costa ver "Da vida dos espectros", de 12 de Fevereiro de 2012, e "Um filme histórico", de 15 de Março de 2014).   

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